30 de novembro de 2005

da Pública para mim

SAL E ESQUECIMENTO
José Eduardo Agualusa

Carlos Escuder vendeu facilmente as fotografias que fez na Ilha. Eram todas elas muito boas. Publicou-as numa conhecida revista madrilena. Só as vi, porém, no mesmo dia em que, por uma dessas incríveis coincidências que fazem com que, tantas vezes, a vida pareça menos verosímil do que a literatura, li a notícia da morte de Mauro. Na revista madrilena havia uma foto dele, extraordinária, contemplando absorto a Fortaleza de São Sebastião.
Cheguei à ilha na companhia de Escuder, jovem fotógrafo catalão, que se propunha construir, para uma tese de mestrado, um portfolio sobre o esquecimento. Carles lera no Le Monde uma reportagem com o título, não muito original, convenhamos, "A Ilha Esquecida", e fora isso que o trouxera até ali. A mim trouxera-me a poesia de Rui Knopfli:
"A fortaleza mergulha no mar / os cansados flancos / e sonha com impossíveis / naves moiras. / Tudo o mais são ruas prisioneiras / e casas velhas a mirar o tédio. / As gentes calam na / voz / uma vontade antiga de lágrimas / e um riquexó de sono / desce a Travessa da Amizade. / Em pleno dia claro / vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique, / e faço-te estes versos / de sal e esquecimento".
Estava sentado a uma das mesas do restaurante África Blues, na área internacional do aeroporto de Joanesburgo, e tinha nas mãos "A Ilha de Próspero", com fotografias do próprio Knopfli, quando Carles me abordou:
"Vai para a Ilha?"
Fizemos juntos a viagem de avião para Maputo, e de Maputo para Nampula. Em Nampula alugámos um taxi. O motorista era um velho seco, frágil, de cabelo inteiramente branco e o rosto sulcado por fundas rugas, mas um sorriso intacto, luminoso, que parecia ter sido estreado naquele mesmo dia. Chamava-se Ben, diminutivo de Benigno, Benigno Meigos, o que me pareceu um bom presságio, sabendo-se que a palavra meigo provém do grego magikós, pertencente à magia, aquele que encanta.
A Ilha, que foi capital de Moçambique até 1898, está ligada ao continente por uma estreita e compridíssima ponte, ferrugenta, como uma corrente a prender um barco ao cais. O abandono não me surpreendeu. Era o que eu esperava: velhos casarões atordoados sob um sol feroz. Um lento cerco de praias, um mar cor de esmeralda, as enormes árvores fatigadas, cobertas de poeira. Havia também jovens à sombra jogando ntchuva, ou simplesmente imóveis, silenciosos, de braços cruzados. Mais tarde, nas varandas, vi mulheres, em capulanas coloridas, alongadas sobre esteiras (algumas delas com o telemóvel pousado junto à cabeça). Naturalmente, já não encontrámos riquexós.
Benigno parou o carro junto a um largo portão - uma pousada -, recebeu o que lhe era devido e prometeu regressar à tarde, para nos levar a conhecer a Ilha, e uma praia, no continente, que era a única, assegurava, onde nos convinha tomar banho. O proprietário da pousada, Mauro, um italiano ruivo, de meia idade, trazia vestida uma t-shirt cor de laranja na qual se podia ler - "Deus acredita em mim". Não fiquei muito convencido. A cabeleira ruiva, desordenada, dava-lhe um ar meio atónito, implausível. O próprio Deus, vendo-o assim, talvez o colocasse em dúvida.
"Esta ilha é um sumidouro", disse, num português triunfante, depois que nos sentámos diante dele, à sombra lilás de um caramanchão coberto por buganvílias. Mandou que nos servissem um sumo de caju, muito fresco, e continuou:
"Vejam bem, os estrangeiros vêm para esta Ilha para esquecerem algo, ou alguém, ou para serem esquecidos. O poeta Tomás António Gonzaga, por exemplo, e os seus companheiros da inconfidência mineira. As pessoas chegam a este lugar e são esquecidas e depois elas próprias se esquecem de quem foram. Gonzaga esqueceu-se da bela Marília. Talvez até se tenha esquecido do Brasil. Deixou descendentes aqui, sabiam?"
"E o senhor?", perguntei-lhe: "veio para esquecer ou para ser esquecido?"
O italiano sacudiu a áspera cabeleira ruiva:
"Ambas as coisas."
Carles quis saber se lhe poderia fazer um retrato, ali mesmo, sentado à mesa, sob aquela luz de fantasia. Mauro assustou-se:
"Não, não! Fotografias não!..."
A veemêcia com que se recusou a ser fotografado irritou Carles.
"Não é italiano", assegurou-me nessa noite, enquanto passeávamos pela Ilha: "é basco. Disfarça o sotaque, talvez tenha passado alguns anos em Itália antes de vir para aqui, mas de vez em quando distrai-se e então volta a ser basco. E também não é ruivo, não percebeste?, pinta o cabelo."
No dia seguinte, ao almoço, Mauro bebeu um pouco para além da conta. Bebemos todos. Abraçou-se a mim:
"Numa outra vida fiz muitos disparates, muita confusão."
Repetiu a palavra confusão. No geral é uma palavra que agrada aos estrangeiros que vivem, ou visitam, Angola ou Moçambique. Kapuscinski, na sua delirante reportagem sobre a independência de Angola, "Mais um dia de vida", dedica-lhe vários parágrafos.
"É isso", insistiu Mauro: "fiz maning confusão. Mais tarde arrependi-me. Arrepender-me foi a parte pior. Agora só quero esquecer, ser esquecido. Espero consegui-lo..."
Quando li a notícia da sua morte soube que não o conseguira. Um homem branco montado numa moto, dizia o jornal. Passou diante da varanda onde Mauro descansava, estendido numa rede, e disparou um único tiro. Depois desapareceu.

2 comentários:

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