Começou de um modo muito triste o ano que agora se vai embora.
A minha priminha já não corre, por entre os canteiros de couves e de alfaces que havia no quintal da minha avó, aquele que eu sempre julguei ser o Éden, com o rabo-de-cavalo a acompanhar a corrida, balançando para a direita, para a esquerda, para cima e para baixo. E eu, ondulando timidamente no baloiço que o meu avô tinha conseguido construir, com uma tábua e duas cordas, sem coragem para grande balanço, contemplava e seguia encantada o caminho das correrias das mais novas...
Eram bem mais felizes do que eu as minhas priminhas! Podiam ter rabo-de-cavalo, bibes coloridos, podiam correr, sabiam correr, sabiam cantar, sabiam dançar.
Nos primeiros dias do ano, recebi a notícia: a minha priminha já não correria mais por entre as couves e as alfaces do jardim da casa dos nossos avós.
Depois os meses correram, voaram e a crise colou-se às nossas conversas, aos nossos pensamentos, de modo tal que parece tudo ter já ruído no futuro que nos espera.
Mas o dois mil e onze trouxe-me também a promessa de uma nova vida. Ninguém substitui ninguem. São paragens da linha da Vida que embarcam uns e desembarcam outros.
E há que saber viver os momentos todos, com a nossa alma vestida a rigor.
Feliz dois mil e doze!
30 de dezembro de 2011
24 de novembro de 2011
Sinais de Fernando Alves
Life
Quando a nossa infância começou a saber que a Terra era redonda havia na mesa da sala exemplares de revistas que tornavam o mundo mais próximo da nossa rua. A brasileira Cruzeiro, a Paris Match, a Life pareciam antecipar, nesse sul do mundo onde cresci, a televisão que não havia. Nesse sul havia uma revista que bebia na mesma fonte: chamava-se Notícia. Todas foram desaparecendo e a Life (um icone da imprensa norte-americana, que hoje faria 75 anos) resiste apenas no formato electrónico. È aí que podemos ver aquelas que a revista considera as melhores 75 capas da sua história. E também as 20 piores.
A esta distância, sabendo ler o que na Life visava moldar a nossa percepção do mundo, é tocante percorrer esse fio da nossa própria vida. A primeira capa, de 23 de novembro de 1936, o logo vermelho e branco sobre a foto a preto e branco da torre do Empire State Building. Ou aquela outra, já em plena guerra, com o perfil quase esculpido de um soldado alemao segurando a sua espingarda. Ou Churchill fitando-nos, logo a 21 de Maio de 1945. E a muito jovem Elisabeth Taylor, a 14 de julho de 47. Ou Marilyn, em Abril de 52. Capa soberba, esta de 22 de Agosto de 1949: o gigante Leo Burnett com o seu chapéu de cow boy. Ele chegou antes da televisão ao sul onde a minha infância começou a saber que a Terra era redonda: nos grandes painéis de publicidade, nas cidades de todo o mundo, ele era o Homem Malboro. Mas esta manhã fiquei mais tempo diante daquela outra capa de Dezembro de 53: Audrey Hepburn está sentada na alcatifa, vestindo apenas uma camisa comprida, e atende o telefone fitando-me.
Os olhos correm, agora, as 20 piores capas da Life. As marionetas de Salzburg como se tivessem perdido o equilibrio e a alma na capa de 29 de Dezembro de 52. Ou aquela, de Novembro de 62 feita de rabanetes e peras, uvas, pimentos, maçãs. Ou aquela outra de Dezembro de 51 em que um homem vestindo uma camisa demasiado garrida nos fita sorrindo. Não é, anota a legenda da Life, 60 anos depois, não é o maluco do tio Ed num hotel de Palm Springs esperando que a hapyy hour comece: é o 33º presidente dos Estados Unidos, Harry Truman vestindo uma camisa havaina.
Já não há revistas assim. Mas a Life, varrida pela crise, sobrevive com uma outra agilidade, em suporte electrónico. Privilegiando o foto-jornalismo, que é o seu assunto. Ela dá-nos as fotos de hoje, os protestos na praça Tahrir, o momento em que lançam gás lacrimogéneo na Assembleia Nacional da Coreia do Sul, Hilary Clinton anunciando mais medidas contra o Irão. Mas, como se nos dissesse que já não quer moldar a nossa visão do mundo, ela desafia-nos a criar a nossa própria Life Timeline. Ela chama-nos: "Partilhe a sua história através de acontecimentos pessoais e momentos que mais importância têm para si". Pela minha parte, dispenso-me. Vim só revisitar o tempo em que comecei a saber que a Terra era redonda.
Emitido a 23 de Novembro de 2011
Quando a nossa infância começou a saber que a Terra era redonda havia na mesa da sala exemplares de revistas que tornavam o mundo mais próximo da nossa rua. A brasileira Cruzeiro, a Paris Match, a Life pareciam antecipar, nesse sul do mundo onde cresci, a televisão que não havia. Nesse sul havia uma revista que bebia na mesma fonte: chamava-se Notícia. Todas foram desaparecendo e a Life (um icone da imprensa norte-americana, que hoje faria 75 anos) resiste apenas no formato electrónico. È aí que podemos ver aquelas que a revista considera as melhores 75 capas da sua história. E também as 20 piores.
A esta distância, sabendo ler o que na Life visava moldar a nossa percepção do mundo, é tocante percorrer esse fio da nossa própria vida. A primeira capa, de 23 de novembro de 1936, o logo vermelho e branco sobre a foto a preto e branco da torre do Empire State Building. Ou aquela outra, já em plena guerra, com o perfil quase esculpido de um soldado alemao segurando a sua espingarda. Ou Churchill fitando-nos, logo a 21 de Maio de 1945. E a muito jovem Elisabeth Taylor, a 14 de julho de 47. Ou Marilyn, em Abril de 52. Capa soberba, esta de 22 de Agosto de 1949: o gigante Leo Burnett com o seu chapéu de cow boy. Ele chegou antes da televisão ao sul onde a minha infância começou a saber que a Terra era redonda: nos grandes painéis de publicidade, nas cidades de todo o mundo, ele era o Homem Malboro. Mas esta manhã fiquei mais tempo diante daquela outra capa de Dezembro de 53: Audrey Hepburn está sentada na alcatifa, vestindo apenas uma camisa comprida, e atende o telefone fitando-me.
Os olhos correm, agora, as 20 piores capas da Life. As marionetas de Salzburg como se tivessem perdido o equilibrio e a alma na capa de 29 de Dezembro de 52. Ou aquela, de Novembro de 62 feita de rabanetes e peras, uvas, pimentos, maçãs. Ou aquela outra de Dezembro de 51 em que um homem vestindo uma camisa demasiado garrida nos fita sorrindo. Não é, anota a legenda da Life, 60 anos depois, não é o maluco do tio Ed num hotel de Palm Springs esperando que a hapyy hour comece: é o 33º presidente dos Estados Unidos, Harry Truman vestindo uma camisa havaina.
Já não há revistas assim. Mas a Life, varrida pela crise, sobrevive com uma outra agilidade, em suporte electrónico. Privilegiando o foto-jornalismo, que é o seu assunto. Ela dá-nos as fotos de hoje, os protestos na praça Tahrir, o momento em que lançam gás lacrimogéneo na Assembleia Nacional da Coreia do Sul, Hilary Clinton anunciando mais medidas contra o Irão. Mas, como se nos dissesse que já não quer moldar a nossa visão do mundo, ela desafia-nos a criar a nossa própria Life Timeline. Ela chama-nos: "Partilhe a sua história através de acontecimentos pessoais e momentos que mais importância têm para si". Pela minha parte, dispenso-me. Vim só revisitar o tempo em que comecei a saber que a Terra era redonda.
Emitido a 23 de Novembro de 2011
30 de janeiro de 2011
Do Público, de hoje
"Venci o cancro!" O perigo das mentiras piedosas
Laura Ferreira dos Santos - 30-01-2011
O cancro é uma doença que se possa vencer, como uma gripe forte?De vez em quando, em revistas da moda ou mesmo em jornais sérios, é dito que alguma personagem conhecida "venceu o cancro", como se nunca mais se tivesse de preocupar com ele.
No entanto, a medicina sabe que só de pouquíssimos cancros se pode de facto dizer que estão curados. Quanto aos outros, está-se entregue à sorte ou ao que quer que seja. Daí a necessidade de exames de vigilância, pois o cancro, de vez em quando, sabe-se lá porquê, apetece-lhe voltar. Uma das coisas que mais me impressionou nas leituras que fiz (e faço) sobre "morte assistida" (de que resultou o livro Ajudas-me a Morrer?, 2009), foi (é) o facto de encontrar recorrentemente este facto: passados 7, 15, 20 ou 30 anos, o cancro voltou. Quando ainda não passara pela recidiva do cancro da mama, estremecia um pouco: será que?... Depois de ter passado pela recidiva, seis anos depois de o ter "vencido", pergunto-me que mais mutilações estarão à minha espera e se estarei disposta a submeter-me a elas. Há pouco, uma óptima funcionária da minha universidade disse-me que o cancro voltara a atingir a mãe, 26 anos depois. Mas, é claro, não estamos em tempos de lembrar a nossa mortalidade (e não é por causa da "crise"...) e temos de ficar pelas histórias cor-de-rosa. Mas serão úteis estas mentiras piedosas?
Para quem tem a sorte de nunca ter passado por um cancro, a ideia pode ser sedutora: "aquilo" é uma doença que se pode vencer, como uma gripe forte, e voltar-se à saúde anterior. Mas quem passou pela experiência do cancro e é metida num follow-up médico até ao fim da vida, ou até ele voltar de forma mais aguda e dar-lhe a morte, sente-se espantada e enraivecida, pois, se essa vitória existe, porque é que vê os médicos assustados ou em pânico, quando não faz exames regulares? E apetece então voltar ao poema do Messias de Händel e dizer não O grave, where is thy victory?, mas O cancer, where is thy defeat?
Apetece-me mesmo falar das consequências políticas destas histórias cor-de-rosa, pois ajudam a construir uma sociedade dessolidária em relação a quem teve cancro ou ainda não morreu dele. Pior ainda se a "chaga" não se vê, se a pessoa, vestida, parece não ter qualquer deficiência e se move com aparente facilidade. Quem sabe então das dores que essa pessoa pode atravessar, quem se interessa por saber com que sequelas ficou, em que limbos físicos (para já não falar de outros) é que vive, apesar de o limbo ter sido abolido teologicamente pela Igreja Católica?
Há tempos, uma operária que também "venceu" o cancro da mama, falou-me em desespero da insensibilidade do patronato, que continua a colocá-la em serviços em que está constantemente a partir a prótese externa que usa (e que é cara!). Entendo que a minha jovem aluna me tenha admoestado, quando comentei numa aula: "Como sabem, a prazo estamos todos mortos!" "Não diga isso, professora!", disse ela. Chamada à realidade pelos colegas, o seu princípio de prazer ainda a fez defender-se: "Está bem, mas eu vou ficar para semente e desmentir essa frase!" Mas deve a sociedade incentivar um tipo de pensamento semelhante?
Às 22h das sextas-feiras, quando uma colega minha que já teve cancro e recidiva sai dos complexos pedagógicos para lá voltar nas segundas, lembra-se sempre com ironia desta frase de "vitória": como "venceu" o cancro por duas vezes, deve ser considerada mais forte do que qualquer outro colega. Por isso, deram-lhe o pior horário da semana, aquele que, em princípio, não consegue trocar com ninguém. O Victory, why is your taste so bitter?
Laura Ferreira dos Santos - 30-01-2011
O cancro é uma doença que se possa vencer, como uma gripe forte?De vez em quando, em revistas da moda ou mesmo em jornais sérios, é dito que alguma personagem conhecida "venceu o cancro", como se nunca mais se tivesse de preocupar com ele.
No entanto, a medicina sabe que só de pouquíssimos cancros se pode de facto dizer que estão curados. Quanto aos outros, está-se entregue à sorte ou ao que quer que seja. Daí a necessidade de exames de vigilância, pois o cancro, de vez em quando, sabe-se lá porquê, apetece-lhe voltar. Uma das coisas que mais me impressionou nas leituras que fiz (e faço) sobre "morte assistida" (de que resultou o livro Ajudas-me a Morrer?, 2009), foi (é) o facto de encontrar recorrentemente este facto: passados 7, 15, 20 ou 30 anos, o cancro voltou. Quando ainda não passara pela recidiva do cancro da mama, estremecia um pouco: será que?... Depois de ter passado pela recidiva, seis anos depois de o ter "vencido", pergunto-me que mais mutilações estarão à minha espera e se estarei disposta a submeter-me a elas. Há pouco, uma óptima funcionária da minha universidade disse-me que o cancro voltara a atingir a mãe, 26 anos depois. Mas, é claro, não estamos em tempos de lembrar a nossa mortalidade (e não é por causa da "crise"...) e temos de ficar pelas histórias cor-de-rosa. Mas serão úteis estas mentiras piedosas?
Para quem tem a sorte de nunca ter passado por um cancro, a ideia pode ser sedutora: "aquilo" é uma doença que se pode vencer, como uma gripe forte, e voltar-se à saúde anterior. Mas quem passou pela experiência do cancro e é metida num follow-up médico até ao fim da vida, ou até ele voltar de forma mais aguda e dar-lhe a morte, sente-se espantada e enraivecida, pois, se essa vitória existe, porque é que vê os médicos assustados ou em pânico, quando não faz exames regulares? E apetece então voltar ao poema do Messias de Händel e dizer não O grave, where is thy victory?, mas O cancer, where is thy defeat?
Apetece-me mesmo falar das consequências políticas destas histórias cor-de-rosa, pois ajudam a construir uma sociedade dessolidária em relação a quem teve cancro ou ainda não morreu dele. Pior ainda se a "chaga" não se vê, se a pessoa, vestida, parece não ter qualquer deficiência e se move com aparente facilidade. Quem sabe então das dores que essa pessoa pode atravessar, quem se interessa por saber com que sequelas ficou, em que limbos físicos (para já não falar de outros) é que vive, apesar de o limbo ter sido abolido teologicamente pela Igreja Católica?
Há tempos, uma operária que também "venceu" o cancro da mama, falou-me em desespero da insensibilidade do patronato, que continua a colocá-la em serviços em que está constantemente a partir a prótese externa que usa (e que é cara!). Entendo que a minha jovem aluna me tenha admoestado, quando comentei numa aula: "Como sabem, a prazo estamos todos mortos!" "Não diga isso, professora!", disse ela. Chamada à realidade pelos colegas, o seu princípio de prazer ainda a fez defender-se: "Está bem, mas eu vou ficar para semente e desmentir essa frase!" Mas deve a sociedade incentivar um tipo de pensamento semelhante?
Às 22h das sextas-feiras, quando uma colega minha que já teve cancro e recidiva sai dos complexos pedagógicos para lá voltar nas segundas, lembra-se sempre com ironia desta frase de "vitória": como "venceu" o cancro por duas vezes, deve ser considerada mais forte do que qualquer outro colega. Por isso, deram-lhe o pior horário da semana, aquele que, em princípio, não consegue trocar com ninguém. O Victory, why is your taste so bitter?
31 de outubro de 2010
23 de setembro de 2010
Ainda ontem - O Mal Escrito - MEC
O cancro é como um romance que, depois de escrito e revisto, ainda não fica bem. Ganha uma segunda vida em que o personagem principal (a vítima, o herói) tem de redefinir-se e curar-se dos resultados das curas - ou rever-se do efeito das revisões.
O cancro não é como um romance, porque a história continua. É mais como uma série televisiva. No primeiro episódio de Boardwalk Empire, realizado por Scorsese (é pena ter-se perdido o hábito de dizer apenas os apelidos dos realizadores), compreendemos que Nucky Thompson, interpretado por Steve Buscemi, não vai conseguir continuar a ser apenas meio-gangster.
As circunstâncias mudam; as surpresas fazem parte da ordem das coisas e, às tantas, deixa-se de poder pensar ou agir de maneira linear, como quem tem ou não tem: como quem já passou ou ainda vai passar por uma fase; como quem sabe ou consegue adivinhar o que vai acontecer.
O cancro é uma vontade de continuação; uma multiplicação de ambições desavergonhadas. Não se pode matá-lo. Mas pode-se contrariá-lo e essas acções contrárias criam contrariedades à medida de quem ousou levantar-se contra ele.
Não estou só a falar da pneumonia da Maria João que ontem a levou da nossa casa, para fazer-lhe frente e dar cabo dela. Nem das sequelas. Nem das consequências esperadas ou inesperadas. É das surpresas. São sempre boas ou más. Muitas vezes acabam bem. Mas nunca são boas. Por serem surpresas. Por serem sorte. Por não nos pertencerem.
O cancro não é como um romance, porque a história continua. É mais como uma série televisiva. No primeiro episódio de Boardwalk Empire, realizado por Scorsese (é pena ter-se perdido o hábito de dizer apenas os apelidos dos realizadores), compreendemos que Nucky Thompson, interpretado por Steve Buscemi, não vai conseguir continuar a ser apenas meio-gangster.
As circunstâncias mudam; as surpresas fazem parte da ordem das coisas e, às tantas, deixa-se de poder pensar ou agir de maneira linear, como quem tem ou não tem: como quem já passou ou ainda vai passar por uma fase; como quem sabe ou consegue adivinhar o que vai acontecer.
O cancro é uma vontade de continuação; uma multiplicação de ambições desavergonhadas. Não se pode matá-lo. Mas pode-se contrariá-lo e essas acções contrárias criam contrariedades à medida de quem ousou levantar-se contra ele.
Não estou só a falar da pneumonia da Maria João que ontem a levou da nossa casa, para fazer-lhe frente e dar cabo dela. Nem das sequelas. Nem das consequências esperadas ou inesperadas. É das surpresas. São sempre boas ou más. Muitas vezes acabam bem. Mas nunca são boas. Por serem surpresas. Por serem sorte. Por não nos pertencerem.
24 de agosto de 2010
Tudo está confuso. Tudo está bem. Tudo está como deveria estar. Não há mundo que acabe às oito e doze da noite. MEC
Antes de jantar- Miguel Esteves Cardoso - 24-08-2010
Várias pessoas me têm perguntado, sendo eu uma pessoa que está no segredo do que vai acontecer, se o mundo vai mesmo acabar em 2012. É tudo gente que sobreviveu ao millenium bug de 2000. Contrariada, talvez. Afinal 2000 é um número mais aterrador, para quem gosta de ter medo mas não liga à aritmética, do que 2012.
Mesmo assim, a ideia que vamos todos morrer daqui a um ano e picos é irresistível, porque elimina o futuro - mais o trabalho e a preocupação que ele implica. Nada atrai tanto como uma data certa. Os obsessivos aproveitam para pôr a casa em ordem. Os chateados aproveitam para se divertirem o resto da vida.
Aqui em casa desenvolvemos, para contrariar o pessimismo de 2012, uma teoria crono-paranóica igualmente convincente - isto é, nada. Acertámos que o dia, como o mundo, tem 24 horas. Jesus nasceu à meia-noite, às zero horas e zero minutos e Portugal fundou-se, muito tempo depois, 27 minutos antes do meio-dia, às 11 horas e 43 minutos. A tempo de fazer o almoço. Os anos 60 a 99 de cada século não contam - são intervalos de recreio. Por exemplo, o mundo entre 1960 e 1999. Estamos agora em 2010: seja às oito e dez da noite. Ainda vamos jantar e é possível que ainda despachemos, metaforicamente, antes de morrer à meia-noite, no ano 2400, uma tosta mista em 2345, 15 anos antes da nossa civilização desaparecer.
Tudo está confuso. Tudo está bem. Tudo está como deveria estar. Não há mundo que acabe às oito e doze da noite.
Várias pessoas me têm perguntado, sendo eu uma pessoa que está no segredo do que vai acontecer, se o mundo vai mesmo acabar em 2012. É tudo gente que sobreviveu ao millenium bug de 2000. Contrariada, talvez. Afinal 2000 é um número mais aterrador, para quem gosta de ter medo mas não liga à aritmética, do que 2012.
Mesmo assim, a ideia que vamos todos morrer daqui a um ano e picos é irresistível, porque elimina o futuro - mais o trabalho e a preocupação que ele implica. Nada atrai tanto como uma data certa. Os obsessivos aproveitam para pôr a casa em ordem. Os chateados aproveitam para se divertirem o resto da vida.
Aqui em casa desenvolvemos, para contrariar o pessimismo de 2012, uma teoria crono-paranóica igualmente convincente - isto é, nada. Acertámos que o dia, como o mundo, tem 24 horas. Jesus nasceu à meia-noite, às zero horas e zero minutos e Portugal fundou-se, muito tempo depois, 27 minutos antes do meio-dia, às 11 horas e 43 minutos. A tempo de fazer o almoço. Os anos 60 a 99 de cada século não contam - são intervalos de recreio. Por exemplo, o mundo entre 1960 e 1999. Estamos agora em 2010: seja às oito e dez da noite. Ainda vamos jantar e é possível que ainda despachemos, metaforicamente, antes de morrer à meia-noite, no ano 2400, uma tosta mista em 2345, 15 anos antes da nossa civilização desaparecer.
Tudo está confuso. Tudo está bem. Tudo está como deveria estar. Não há mundo que acabe às oito e doze da noite.
13 de julho de 2010
O MEC e o Mundial!
Estou desde 6 de Junho a ver todos os jogos do Mundial e a escrever sobre esses jogos, três mil caracteres, todos os dias. Não estou bem. Gosto muito do jornal em que escrevi - O Jogo - e eles também gostam muito de mim. Mas detesto futebol e estou perto do fim. Ou assim espero.
Sabia que me iam arrancar um grande naco da minha vida - pelo menos um terço dela, oito horas. Mas pensava que, tal como tinha acontecido noutros Euros e Mundiais, ainda ficaria com os outros dois terços, para viver e isso.
Mas aí a meio do Mundial, aconteceu uma coisa horrível. Estava a almoçar com a minha mulher na praia - um tempo sagrado, só nosso - e, de repente, dei comigo a fazer-lhe perguntas de futebol.
O pior é que, antes de dar por isso, ainda fiz três ou quatro. E ela, que partilha o meu grande amor por tudo o que tenha a ver com bola, lá foi respondendo. Devemos ter conversado sobre o Mundial durante quatro longos minutos - e eu estava interessado na conversa.
E se não fosse a expressão aflita e estupefacta da Maria João - como se estivessem a crescer-me malmequeres das orelhas - eu nem sequer teria caído em mim.
Tinha sido contaminado pelo futebol. O futebol tinha saído da jaula fortificada onde eu o guardo e tinha conseguido invadir o jardim maximum security da minha vida.
A minha mãe já me tinha avisado. Quando nós éramos pequeninos e ela passava tempo de mais connosco, falando criancês - aquela língua delicodoce e cheia de diminutivos que os pais usam para dar ordens e ensinar coisas aos filhotes -, acontecia-lhe continuar a usar a mesma língua quando estava com adultos.
Durante um cocktail, aconselhava um comodoro americano que acabara de lhe ser apresentado a "não vai beber esse uisquizinho todo de uma vez, pois não? Parece muito bom e fresquinho, cheio de pedrinhas de gelo, mas o álcool faz mal ao figadozinho! E nós não queremos que isso aconteça com o comodoro, pois não? Não! Claro que não queremos, porque o comodoro é um bom comodoro e quer um dia ser almirante, não é?"
No criancês, o adulto geralmente responde às suas próprias perguntas e à criança cabe fazer que sim ou que não com a cabeça.
O futebolês não é muito diferente. Pergunta-se: "Achaste que foi fora-de-jogo?" E segue-se logo com a resposta: "Aquilo nunca foi fora de jogo!" (O futebolês é tão exageradamente agressivo e discordante como o criancês é ternurento e unanimista).
É muito perigosa esta contaminação cruzada. Todas as línguas infectadas ficam a perder. Um exemplo contemporâneo é a contaminação cruzada da língua amorosa com a língua amistosa ou social. Chama-se "meu amor" aos cabeleireiros: "Despacha-te, meu amor, que eu estou super-atrasada."
Quando "meu amor" é para toda a gente, todas as palavras do vocabulário amoroso são despromovidas. "Querido" já se usa como palavra agressiva: "Ó meu querido amigo, se você não tira já daí o carro..."
Na Inglaterra, love you! já se usa mecanicamente ao telefone, para indicar o fim de uma conversa. Em Portugal, ainda não chegámos a esse ponto, mas já se diz "amo-te" com grande ligeireza, no sentido de "obrigado!" ou "fizeste exactamente o que eu queria - obrigada!"
Diante esta apropriação, o amorês é obrigado a carregar-se de bagagens suplementares. Se "amo-te" não quer dizer nada, é preciso acrescentar: "Amo-te. Mas é a sério. É amor mesmo; amor verdadeiro." O que estraga tudo, claro.
Pior do que a ignorância
Durante o Mundial, aprendi este facto assustador: que é possível passar o dia inteiro a pensar em futebol. Os poucos momentos em que não se pode - como quando é preciso decidir o que se vai almoçar ou cumprimentar uma pessoa conhecida - são encarados como agressões. Como roubos de tempo. Quanto mais necessários são (ir à casa de banho), mais enervam.
Mais terrível ainda é descobrir que o futebol fica acima dos princípios, por muito profundos que sejam. Mais de uma vez, dei por mim a torcer por selecções oriundas de países com sistemas políticos ou valores culturais que me eram repugnantes.
Os apologistas do futebol dizem que o futebol une todos os povos do mundo. O pior é que é verdade. Produz uma sensação de conhecimento que é pior do que a ignorância. É como o bielorrusso que nos pergunta de onde somos e, quando dizemos Portugal, responde logo, todo contente e sabichão: "Sim, sim! Cristiano Ronaldo!"
A sabedoria que o futebol traz é ilusória. Imagine-se o mais perspicaz e inteligente bielorrusso, com uma pistola da polícia secreta encostada à cabeça, a ver jogar Cristiano Ronaldo para, a partir da maneira como ele joga, tentar ficar com uma ideia de como é Portugal e transmitir ao facínora que nos quer fazer mal o que aprendeu sobre o nosso país e a nossa gente.
Portugal joga à portuguesa? Os brasileiros têm sido os mais estigmatizados por esta contaminação cruzada, exigindo-se ignorantemente a sucessivas selecções que jogue "bonito" conforme os estereótipos implantados pelo Zé Carioca e pela Carmen Miranda.
É mais uma contaminação cruzada, esta de confundir a maneira de jogar de uma equipa com a maneira de ser de um país. Mesmo que um país pudesse ter uma maneira de ser.
No Mundial que acabou ontem, tal como em todos os anteriores, é a figura do treinador que impede que os brasileiros joguem "à brasileira" ou os holandeses "à holandesa". Subjaz a convicção que, caso se subtraísse a influência nefasta do treinador, os jogadores começariam logo a jogar naturalmente, no estilo que aprenderam ao colo da mãe.
Se o treinador for estrangeiro - como Fabio Capello e a selecção inglesa -, a noção é ainda mais fantasiosa. O italiano está a obrigar os ingleses a jogar à italiana. Se eles jogassem à inglesa, teriam ganho.
Refazer a vida
Destas confusões simplórias e enganadoras não viria grande mal ao mundo - se não fossem tão divertidas. O que vale é que, mal fazemos uma, logo ela é desmentida no dia seguinte, quando acontece nem sequer o contrário do que esperávamos - mas outra coisa diferente, fora do espectro das nossas hipóteses.
Foi quando a Alemanha eliminou a Argentina, por 4-0, que eu comecei a ficar preocupado. Fiquei triste - triste! - com a derrota da Argentina. E, por outro lado - o lado ainda mais preocupante -, gostei de ver a Alemanha jogar. E não lhes fiquei com ódio nenhum.
Que se passava? Só agora, com o Mundial já arrumado, posso enfrentar a inaceitável conclusão: tinha começado a gostar de futebol. Não da selecção portuguesa ou brasileira ou argentina. Não do futebol da Alemanha ou do Uruguai. Mas de futebol. Por si só. Foi chocante.
Para mais, segundo me avisaram alguns amigos preocupados comigo, não era só gostar - estava também a começar a perceber alguma coisa de futebol. Isto, para quem pensava que não havia ali nada para perceber, foi um susto ontológico.
Aqui fica o aviso, para quem tenha a inteligência e a sorte de não gostar de futebol: não se exponha ao futebol por largos períodos de tempo. Porque será contaminado. E qualquer felicidade que o futebol lhe dê far-se-á pagar com o quádrobro de sofrimento.
Para fugir ao futebol, tive de refazer a minha vida. Foi a minha mulher que me salvou. Cada vez que eu falava de futebol - sem ser durante um jogo -, ela respondia-me como se gostasse de futebol. E aí eu acordava, com o horror que isso acontecesse.
Eu gostar de futebol, ainda vá que não vá. Mas ela - ela não podia ser. Para mais, contaminada por mim.
Soluçando, disse adeus à rapaziada d"O Jogo, com quem tinha sido tão feliz, e casei-me com o PÚBLICO, onde o futebol não me pudesse encontrar.
Este é o meu primeiro trabalho casado para o PÚBLICO. É sobre o Mundial.
Se calhar, é impossível fugir.
Sabia que me iam arrancar um grande naco da minha vida - pelo menos um terço dela, oito horas. Mas pensava que, tal como tinha acontecido noutros Euros e Mundiais, ainda ficaria com os outros dois terços, para viver e isso.
Mas aí a meio do Mundial, aconteceu uma coisa horrível. Estava a almoçar com a minha mulher na praia - um tempo sagrado, só nosso - e, de repente, dei comigo a fazer-lhe perguntas de futebol.
O pior é que, antes de dar por isso, ainda fiz três ou quatro. E ela, que partilha o meu grande amor por tudo o que tenha a ver com bola, lá foi respondendo. Devemos ter conversado sobre o Mundial durante quatro longos minutos - e eu estava interessado na conversa.
E se não fosse a expressão aflita e estupefacta da Maria João - como se estivessem a crescer-me malmequeres das orelhas - eu nem sequer teria caído em mim.
Tinha sido contaminado pelo futebol. O futebol tinha saído da jaula fortificada onde eu o guardo e tinha conseguido invadir o jardim maximum security da minha vida.
A minha mãe já me tinha avisado. Quando nós éramos pequeninos e ela passava tempo de mais connosco, falando criancês - aquela língua delicodoce e cheia de diminutivos que os pais usam para dar ordens e ensinar coisas aos filhotes -, acontecia-lhe continuar a usar a mesma língua quando estava com adultos.
Durante um cocktail, aconselhava um comodoro americano que acabara de lhe ser apresentado a "não vai beber esse uisquizinho todo de uma vez, pois não? Parece muito bom e fresquinho, cheio de pedrinhas de gelo, mas o álcool faz mal ao figadozinho! E nós não queremos que isso aconteça com o comodoro, pois não? Não! Claro que não queremos, porque o comodoro é um bom comodoro e quer um dia ser almirante, não é?"
No criancês, o adulto geralmente responde às suas próprias perguntas e à criança cabe fazer que sim ou que não com a cabeça.
O futebolês não é muito diferente. Pergunta-se: "Achaste que foi fora-de-jogo?" E segue-se logo com a resposta: "Aquilo nunca foi fora de jogo!" (O futebolês é tão exageradamente agressivo e discordante como o criancês é ternurento e unanimista).
É muito perigosa esta contaminação cruzada. Todas as línguas infectadas ficam a perder. Um exemplo contemporâneo é a contaminação cruzada da língua amorosa com a língua amistosa ou social. Chama-se "meu amor" aos cabeleireiros: "Despacha-te, meu amor, que eu estou super-atrasada."
Quando "meu amor" é para toda a gente, todas as palavras do vocabulário amoroso são despromovidas. "Querido" já se usa como palavra agressiva: "Ó meu querido amigo, se você não tira já daí o carro..."
Na Inglaterra, love you! já se usa mecanicamente ao telefone, para indicar o fim de uma conversa. Em Portugal, ainda não chegámos a esse ponto, mas já se diz "amo-te" com grande ligeireza, no sentido de "obrigado!" ou "fizeste exactamente o que eu queria - obrigada!"
Diante esta apropriação, o amorês é obrigado a carregar-se de bagagens suplementares. Se "amo-te" não quer dizer nada, é preciso acrescentar: "Amo-te. Mas é a sério. É amor mesmo; amor verdadeiro." O que estraga tudo, claro.
Pior do que a ignorância
Durante o Mundial, aprendi este facto assustador: que é possível passar o dia inteiro a pensar em futebol. Os poucos momentos em que não se pode - como quando é preciso decidir o que se vai almoçar ou cumprimentar uma pessoa conhecida - são encarados como agressões. Como roubos de tempo. Quanto mais necessários são (ir à casa de banho), mais enervam.
Mais terrível ainda é descobrir que o futebol fica acima dos princípios, por muito profundos que sejam. Mais de uma vez, dei por mim a torcer por selecções oriundas de países com sistemas políticos ou valores culturais que me eram repugnantes.
Os apologistas do futebol dizem que o futebol une todos os povos do mundo. O pior é que é verdade. Produz uma sensação de conhecimento que é pior do que a ignorância. É como o bielorrusso que nos pergunta de onde somos e, quando dizemos Portugal, responde logo, todo contente e sabichão: "Sim, sim! Cristiano Ronaldo!"
A sabedoria que o futebol traz é ilusória. Imagine-se o mais perspicaz e inteligente bielorrusso, com uma pistola da polícia secreta encostada à cabeça, a ver jogar Cristiano Ronaldo para, a partir da maneira como ele joga, tentar ficar com uma ideia de como é Portugal e transmitir ao facínora que nos quer fazer mal o que aprendeu sobre o nosso país e a nossa gente.
Portugal joga à portuguesa? Os brasileiros têm sido os mais estigmatizados por esta contaminação cruzada, exigindo-se ignorantemente a sucessivas selecções que jogue "bonito" conforme os estereótipos implantados pelo Zé Carioca e pela Carmen Miranda.
É mais uma contaminação cruzada, esta de confundir a maneira de jogar de uma equipa com a maneira de ser de um país. Mesmo que um país pudesse ter uma maneira de ser.
No Mundial que acabou ontem, tal como em todos os anteriores, é a figura do treinador que impede que os brasileiros joguem "à brasileira" ou os holandeses "à holandesa". Subjaz a convicção que, caso se subtraísse a influência nefasta do treinador, os jogadores começariam logo a jogar naturalmente, no estilo que aprenderam ao colo da mãe.
Se o treinador for estrangeiro - como Fabio Capello e a selecção inglesa -, a noção é ainda mais fantasiosa. O italiano está a obrigar os ingleses a jogar à italiana. Se eles jogassem à inglesa, teriam ganho.
Refazer a vida
Destas confusões simplórias e enganadoras não viria grande mal ao mundo - se não fossem tão divertidas. O que vale é que, mal fazemos uma, logo ela é desmentida no dia seguinte, quando acontece nem sequer o contrário do que esperávamos - mas outra coisa diferente, fora do espectro das nossas hipóteses.
Foi quando a Alemanha eliminou a Argentina, por 4-0, que eu comecei a ficar preocupado. Fiquei triste - triste! - com a derrota da Argentina. E, por outro lado - o lado ainda mais preocupante -, gostei de ver a Alemanha jogar. E não lhes fiquei com ódio nenhum.
Que se passava? Só agora, com o Mundial já arrumado, posso enfrentar a inaceitável conclusão: tinha começado a gostar de futebol. Não da selecção portuguesa ou brasileira ou argentina. Não do futebol da Alemanha ou do Uruguai. Mas de futebol. Por si só. Foi chocante.
Para mais, segundo me avisaram alguns amigos preocupados comigo, não era só gostar - estava também a começar a perceber alguma coisa de futebol. Isto, para quem pensava que não havia ali nada para perceber, foi um susto ontológico.
Aqui fica o aviso, para quem tenha a inteligência e a sorte de não gostar de futebol: não se exponha ao futebol por largos períodos de tempo. Porque será contaminado. E qualquer felicidade que o futebol lhe dê far-se-á pagar com o quádrobro de sofrimento.
Para fugir ao futebol, tive de refazer a minha vida. Foi a minha mulher que me salvou. Cada vez que eu falava de futebol - sem ser durante um jogo -, ela respondia-me como se gostasse de futebol. E aí eu acordava, com o horror que isso acontecesse.
Eu gostar de futebol, ainda vá que não vá. Mas ela - ela não podia ser. Para mais, contaminada por mim.
Soluçando, disse adeus à rapaziada d"O Jogo, com quem tinha sido tão feliz, e casei-me com o PÚBLICO, onde o futebol não me pudesse encontrar.
Este é o meu primeiro trabalho casado para o PÚBLICO. É sobre o Mundial.
Se calhar, é impossível fugir.
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