12 de setembro de 2004

O Fim do Mundo, também segundo Lobo Antunes

O Fim Do Mundo

"Isto não pode ter acabado mas não sou tão parvo que vá chorar à tua frente. Pelo contrário: apareço-te com um sorriso como se não fosse nada, sento-me à mesa, ponho o guardanapo ao pescoço por causa dos salpicos na camisa ( a minha mãe, coitada, que já vê mal, vê-se agora grega com as nódoas), digo

- Boa noite, Manuela

e como a sopa até ao fim, a falar disto e daquilo, sem dar a entender que estou triste, sem dar a entender que tenho um nó na garganta, sem dar a entender que sinto a minha vida em cacos porque juro-te que não sou tão parvo que vá chorar à tua frente. Tu levantas-te, tiras-me a colher, pões o meu prato em cima do teu, trazes o arroz de coelho da cozinha, e eu abrir uma garrafa de cerveja que às vezes sempre ajuda um bocadinho a dissolver a tristeza e o nó na garganta, e enquanto me sirvo do arroz fico à espera que me fales do Carlos.

No fundo pode ser que a culpa seja minha por adiar constantemente o casamento contigo, por vir aqui às segundas e às quintas e ir-me embora, à uma da manhã, com a desculpa de que, com a idade, deixa a porta aberta e se esquece do gás, com a desculpa de que sou filho único e só me tem a mim, quando a verdade é que os compromissos me assustam, me assusta a ideia de quereres ter crianças (não tenho jeito nenhum para crianças), e com tantas desculpas e tantos adiamentos era mais que certo que acabavas por te cansar e que se não fosse o Carlos era outro, o Carlos pelo menos é um rapaz sossegado, gosta de ti, a mãe dele é quinze anos mais nova que a minha e tem uma saúde de ferro, e uma mulher não pode passar a vida inteira à espera que um fulano decida, não pode passar a maior parte das noites sem companhia a ver vídeos na televisão, uma mulher precisa de conversar, precisa de um homem para tomar conta e eu não sirvo para isso, Manuela, levo o serão a olhar para o relógio com receio de perder o barco, despeço-me à pressa com um beijo na testa, telefono de fugida do emprego até que, na semana passada, me avisaste

- Preciso imenso de falar contigo

e eu entendi que me querias explicar que o Carlos estava disposto a dar-te o que eu nunca te dei, que não ligava com o teu feitio ficares sozinha, ires sozinha à praia, ires sozinha ao cinema, aguentar as anginas sem ninguém ao pé, e oiço a minha voz

- o coelho está óptimo

farto de saber que não era isso que tu querias ouvir, farto de saber que o que querias ouvir era

- eu caso-me contigo, esquece o Carlos

mas não consigo, não sou capaz, gosto de ti no entanto não me vejo, percebes, a viver contigo, o amor é uma coisa tão esquisita, Manuela, garanto-te que tenho amor por ti, garanto-te que adorava pegar-te na mão

- Eu caso contigo, esquece o Carlos

e as palavras não saem, tu a garantires-me em silêncio

- Se ficares quero lá saber do Carlos

e tudo o que sou capaz, que idiotice, é elogiar-te o coelho em lugar de te elogiar a ti, de te pegar na mão de te jurar

- Amo-te

porque te amo, porque não conheço quem faça macramé tão bem, quem tenha a casa tão linda, a roupa tão asseada, nem um grão de pó na mobília, não conheço quem me trate como tu me tratas, acho que o Carlos tem uma sorte danada, acho que vou sentir a tua falta a doer-me e todavia não sou tão parvo que vá chorar à tua frente, falo contigo como se não fosse nada, enfio o guardanapo na argola, levanto-me, abotoo o casaco, e tu

- Preciso imenso de falar contigo

e eu, que não sou tão parvo que vá chorar à tua frente, eu a agarrar a maçaneta da porta

- Amanhã, amanhã

sabendo perfeitamente que não vou vir amanhã, que não vou vir nunca mais, que se viesse encontrava a mesa posta e o Carlos sentado no meu lugar, a comer o meu arroz de coelho e a propor-te

- vamos tratar da papelada no Registo

sabendo perfeitamente que daqui a dois ou três meses vou espreitar ao jardim da Gulbenkian, e lá estarão vocês e os padrinhos a tirarem fotografias junto à estátua, junto ao lago, e pode ser que me vejas, Manuela, pode ser que me distingas no meio dos arbustos, pode ser que olhes para mim como olhas agora

- preciso imenso de falar contigo

só que não dirás nada porque é tarde, porque não podes passar o resto da vida a ires sozinha à praia, a ires sozinha ao cinema, a aguentar as anginas sen«m ninguém ao pé, talvez me acenes, talvez eu te acene e apanhe logo o autocarro porque a velhota precisa de mim, com a idade deixa aporta aberta e esquece-se do gás, e ao entrar a minha mãe preocupada

- Vens pálido, Jorginho

e eu, muito depressa

- Não é nada, mãe

e sento-me no quintal das traseiras até ser noite e sem chorar, claro, que não sou tão parvo que comece a chorar, que mariquice chorar, eu não choro, não penses que choro, não choro, sento-me no quintal das traseiras até ser noite, a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas."

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