19 de setembro de 2004

OS CÃES

Domingo, 19 de Setembro de 2004

José Eduardo Agualusa

"Em criança eu já era ambicioso. Quando me perguntavam - "o que queres ser quando fores grande?" -, punha-me nos bicos dos pés e respondia - "o maior!". Havia de ser o maior. Só não sabia em que ramo".

Jerónimo suspirou. Não disse mais nada. Não era necessário dizer mais nada. Olhando através da janela avistava-se o rio, uma massa de água lamacenta e rumorosa, que descia sempre, e sempre, em meio à ramagem das árvores, ao capim verde, às altas palmas das palmeiras, arrastando para o mar a última luz do dia. Jerónimo levara-me a visitar toda a fazenda. Achei-a imensa. Mostrou-me o lago (salgado) onde pousavam os flamingos. Imitou o canto de diversos pássaros, conseguindo, em alguns casos, que estes lhe respondessem. Deixou que eu fotografasse, pousada numa larga folha de bananeira, uma espécie raríssima de borboleta, mas não me autorizou a capturá-la. Acompanhei-o no jipe, em silêncio, enquanto ele, apontando com o dedo, me ia apresentando às diferentes ervas, ramadas, rebentos e flores, exaltando as virtudes medicinais desta ou daquela ou alertando para os perigos de uma outra.

Ao vê-lo pela primeira vez, na tarde anterior, ficara com a impressão de estar diante de um sujeito capaz de conseguir tudo aquilo que se propunha, duro e determinado. Não imaginei que as flores o comovessem. Os olhos, frios, sombrios, pousaram nos meus, e ele sorriu:

"Não nos conhecemos já?"

O sorriso transformava-o. Enquanto me mostrava a fazenda sorria o tempo todo. Em determinada altura vimos um rapazinho a cruzar um descampado. Jerónimo dirigiu o jipe na direcção dele.

"Estás a caçar pássaros?"

O rapaz assegurou que não. Jerónimo sacudiu os ombros:

"Ainda bem. Seja como for isto é terreno privado. É melhor saíres daqui antes que anoiteça. Depois solto os meus cães e eles dão contigo e comem-te. Não vai sobrar nada de ti. Nem os ossos."

O rapaz riu-se. Jerónimo também se riu e eu imitei-o. A rir parecia um menino. Dali, onde estávamos agora, sentados ambos em cadeirões de verga, podíamos ver o rio, um caminho entre palmeiras e, ao fundo, a jaula onde os cães aguardavam. Eram animais sólidos, ansiosos, que não pareciam feitos de carne, mas de um material simultaneamente mais firme e mais elástico. Tinham uma cabeça enorme, desproporcionada em relação ao corpo, e era evidente que toda a sua energia convergia para os possantes maxilares. Jerónimo reparou no meu olhar:

"Ah, sim, são perigosos. Atacam sem aviso e quando fecham os dentes ninguém consegue que voltem a abrir a boca."

Contou que, meses antes, um animal da mesma ninhada dos que eu via ali mordera um camponês numa das pernas. Nunca mais a largou, nem quando os outros trabalhadores o feriram, no lombo e na cabeça, com paus e com pedras, nem quando o regaram com jactos fortes de água, nem quando lhe lançaram álcool nos olhos, nem sequer depois que o mataram, cortando-lhe o pescoço a golpes de catana.

Há países onde é proibido criar estes cães. A mim, tudo o que é proibido me entusiasma. Agora estão um pouco preguiçosos. Costumava treiná-los todos os dias, com a ajuda de um burro, mas o burro suicidou-se."

"Um burro?!"

"Sim, suicidou-se. Atirou-se ao rio."

Explicou que costumava amarrar o burro a uma árvore e depois açulava os cães contra ele. O burro lutava bravamente, às patadas, às dentadas, até repelir os atacantes.

"Mas não se magoava?"

"É claro. Os cães arrancavam-lhe pedaços de carne. Bifes inteiros."

Riu-se muito. Eu não me ri. Levantei-me e dei alguns passos em direcção à porta. A noite já tinha caído e cobria tudo, agora, com o seu vasto silêncio de estrelas. Voltei a sentar-me. Jerónimo foi soltar os cães.

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