17 de outubro de 2004

FÁBULA de Agualusa

Domingo, 17 de Outubro de 2004

José Eduardo Agualusa

Esta é a história de um lobo que se disfarçou de boi, com tal arte, com tal lábia e manha, que conseguiu ser eleito, em assembleia magna, para chefe do rebanho. Pouco a pouco, habilmente, o lobo foi-se livrando dos descontentes, devorando-os a coberto do segredo da noite, ao mesmo tempo que impunha a todo o rebanho um regime de terror.

(O lobo, falando em sua defesa: "comer os inimigos, comê-los realmente, beber o seu sangue, saborear a sua carne, pode ser uma forma de os homenagear. Comer os inimigos, com puré de banana, era até há pouco tempo uma tradição muito respeitada entre algumas tribos indígenas da floresta amazónica. Bem, é certo, eu não tinha puré de banana. Comi-os crus e sem acompanhamento.")

Por vezes, enquanto discursava, levado pelo entusiasmo, o lobo descuidava-se e mostrava os dentes. Corriam rumores de que o grande líder não seria afinal um boi, com pose de lobo, mas um verdadeiro lobo, disfarçado de boi. Os bois mais próximos do lobo, aqueles que comiam à sua mesa, começaram a mostrar-se inquietos.

"Comenta-se por aí, à boca pequena, que tu és um lobo", arriscou um deles, a quem chamavam Boiardo, um tanto a medo, ao ouvido do chefe: "um lobo autêntico."

"Calúnias!", gritou o lobo, e mostrou-lhe os dentes: "o que achas tu?"

O pobre Boiardo, em pânico, já sem quaisquer dúvidas, os olhos presos aos ferozes dentes do lobo, soprou uma desculpa. Depois, firmando a voz, para que o ouvissem os restantes bois, para que o lobo não pudesse colocar em causa a sua lealdade, assegurou:

"És um boi, sim, um belo boi, ou melhor, um touro. Pois então não vejo que és um touro?!"

O boi Boiardo passou a ser desde esse dia o mais zeloso defensor do chefe, denunciando ele próprio os bois com dúvidas, os menos entusiastas, os que ruminavam em manada pelos prados ("sabe-se lá o que ruminam eles"), ao mesmo tempo que por toda a parte, em altos mugidos, exaltava as qualidades bovinas do chefe, a sua, digamos assim, bovinidade. O desaparecimento dos bois tresmalhados, cujas ossadas apareciam mais tarde, muito roídas, nalgum rincão sombrio, era sempre atribuído à acção dos lobos, que se dizia rondarem por ali, ainda que ninguém os visse, justificando tais tragédias a adopção de medidas de segurança cada vez mais rigorosas e apertadas. "Uma democracia vigiada", chamava-lhe o lobo.

(O boi Boiardo, falando em sua defesa: "Era um chefe duro, um verdadeiro lobo, é certo, mas mantinha os rebanhos na ordem e as matilhas à distância. Comeu alguns de nós, sim senhor, mas se não fosse ele outros lobos teriam feito o mesmo. Ao menos fomos comidos por um de nós... Quero dizer, fomos nós, o povo, quem o elegeu, não fomos?")

Então, numa tarde de nuvens baixas, uma ovelha negra, já velha, muito velha e muito negra, a quem as outras ovelhas chamavam simplesmente A Velha, aproximou-se do lobo e disse-lhe, em voz bem alta e sonora, depois de dobrar o corpo numa larga e alquebrada vénia:

"O rebanho está dividido. Dizem alguns que és um lobo; dizem outros que és apenas um boi com dentes de lobo. A mim não me interessa saber se és um lobo ou não. O que interessa é que alguém anda a comer os bois."

(A ovelha chamada A Velha, num aparte, dirigindo-se ao escritor: "Nós, as ovelhas, os bois, os carneiros, não comemos carne. Não matamos para comer. Muitos de nós acham-se, por isso, seres moralmente superiores. Eu acho, simplesmente, que somos herbívoros.")

"Estou velha. O meu destino não me preocupa mais. Não gosto de pensar em mim como comida, ninguém gosta, presumo, nem a erva mais humilde, e todavia todos o somos. Se não for um lobo a comer-me, hoje, hão-de comer-me amanhã as formigas e os vermes. Por isso me atrevi a vir aqui dizer-te isto - tiraste-nos a liberdade, argumentavas tu, para melhor combater os lobos, mas os lobos continuam a vir de noite para comer os bois. Eu escolho a liberdade."

E dizendo isto, com uma agilidade que seu aspecto não deixava adivinhar, arrancou-lhe a máscara. O lobo, atordoado, ainda tentou reagir:

"Prendam-me esta ovelha negra!"

Os bois, porém, não lhe obedeceram. Ao contrário, após um primeiro instante de assombro, baixaram os cornos e lançaram-se contra ele. E o lobo fugiu.

(O lobo, já enfastiado, dirige-se ao escritor: "Tem uma moral, esta tua história?". Ao que o escritor responde encolhendo os ombros: "Não sei. Sou apenas o escritor. Limito-me a contar uma história. Se quiseres uma interpretação vai procurar um rabino, um semiólogo ou um analista político. Agora desanda. A minha história chegou ao fim.")

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