22 de abril de 2005

Estamos outra vez em Abril!

Estamos em Abril!
Para alguns, já estamos em Abril! Meu Deus, como o tempo voa!
Para outros, ainda estamos em Abril! Para estes, o tempo não tem voado, não tem sido tão veloz, como só ele, o tempo, sabe ser. Embora a escritora sul-americana, Laura Esquível, defenda que veloz, veloz é o desejo....
Hoje dava (me) jeito dizer que já estamos em Abril, ainda estamos em Abril, ou até, estamos em Abril, outra vez!
Estou a falar daquele Abril de cravos e de poesia. Todos os anos se repete, cada vez com menos cravos, cada vez com menos versos. Nesse Abril, tudo rimava com liberdade: verdade, lealdade, sinceridade e, sobretudo, fraternidade. O provérbio acrescentava versos às águas mil.
Nesse Abril, debaixo de um sol que a todos aquecia, os soldados misturaram-se com os civis. Subiram para cima dos tanques e aclamaram a vitória. Havia cravos nas pontas das baionetas.
Os versos chegaram de todo o lado, até do lado de lá do mar, onde a língua portuguesa também mora. Do Brasil. Vieram pela voz de Chico Buarque, poeta irmão dos nossos maiores poetas. Os versos de Chico Buarque traziam a alegria da primavera e pedia que lhe guardassem um cravo só para si. E não se esqueceu de nada no seu poema breve. Não se esqueceu que era uma festa “Sei que estás em festa” e, com cumplicidade e intimidade de irmão, acrescentava “pá”. Estávamos tão contentes, pá! Era mesmo uma festa, pá! Chegaram a mandar-te o tal cheirinho a alecrim, que pedias com urgência? Se calhar esqueceram-se! Sabes, poeta do outro lado do mar, eles esqueceram-se de tanta coisa...
Poucos anos depois, tornavas a escrever quase os mesmos versos. Outra vez “Tanto Mar”, com um sabor amargo, o sabor do fim da festa. Sabes por que é que acabou, Chico Buarque da Holanda? Talvez saibas, porque dizes que ainda guardas “renitente” um velho cravo para ti... Mas há esperança no teu recado: uma semente da festa “nalgum canto de jardim”.
Pá, naquele Abril, até o Alegre, o poeta, Manuel voltou. Vivia longe, a perguntar ao vento que passava notícias o seu país. Estava exilado na Argélia e era lá que resistia, com aquela voz que enche o mundo, a fazer rádio. “Voz da Liberdade”, chamava-se o seu programa. Foi o Portugal de Abril que o fez voltar. Regressar.
“Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão/ há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz não.” Diz a última quadra das trovas ao vento que passa.
Há muita saudade nestes versos. A saudade é um preço caro. Viver sem liberdade também. Para além do exílio o poeta Manuel Alegre conheceu as masmorras, em Luanda, na Fortaleza de S. Paulo, onde esteve preso durante seis meses e onde começou a escrever o seu primeiro livro de poemas. Mas também diz outro poeta, Carlos Oliveira, que ninguém corta a raiz ao pensamento, nem um machado.
Há porém, como em Buarque, o adeus à festa. No poema “Última página”, o poeta despede-se do livro, duma vida de poesia que termina.. Ao longo destes versos percorre-a. Lá está “Nambuangongo, onde tu meu amor não viste nada”. “Em Nambuangongo a gente pensa que não volta / cada carta é um adeus em cada carta se morre.” Mas, no poeta, a esperança não morre. “ser poeta é ser mais alto” diz Florbela Espanca. Talvez por isso o poeta convide “a rapariga do País de Abril a soltar a primavera no País de Abril”.
Há um país de Abril. “País de Abril é o sítio do poema./ Não fica nos terraços da saudade / não fica em longes terras. Fica exactamente aqui / tão perto que parece longe.”
Mas neste país de Abril, há muito que as cantigas anunciavam a primavera. José Carlos Ary dos Santos , “poeta castrado, não”, distribuiu os seus versos pelas vozes que lançaram esta semente de esperança. Tordo, Tonicha, Simone e até Amália, a diva do fado, cantaram versos de Ary. A irreverência tomava conta do pensamento através da cantiga e havia de chegar a algum lado. “Quem faz um filho, fá-lo por gosto.” “Oh minha terra minha lonjura/ por mim perdida/ por mim achada”, cantou Simone, com a força que ainda hoje lhe conhecemos.
“Nós vamos pegar o mundo/ pelos cornos da desgraça / e fazermos da tristeza / graça”, cantou Fernando Tordo, com o vigor da razão e da juventude, levando como Simone e Tonicha, os versos para lá das fronteiras da ignorância da censura. O lápis azul não viu, não deu por isso.
Porque os versos de Ary eram sempre assim: contagiantes de um entusiasmo, que não cabe numa vida só. Mas a ele, tal foi concedido: em poucos anos, alguns, viver muito, escrever muito, gritar muito os seus versos, muito alto, numa voz muito forte...
No longo poema “As portas que Abril abriu” conta a revolução, em versos simples, que todos entendem. “Era uma vez um país/ onde entre o mar e a guerra/ vivia o mais infeliz/ dos povos à beira–terra.” Conta em verso tudo desde o princípio, a senha, a cantiga de Paulo de Carvalho, “E Depois do Adeus”, a Grândola Vila Morena, cantiga que se tornou hino dessa madrugada irrepetível nas emoções da História... As manifestações, o primeiro Primeiro de Maio, 28 de Setembro, 11 de Março, reforma agrária, a terra a quem a trabalha...
E o grito final: “ninguém mais cerra as portas que Abril abriu.”
Estamos outra vez em Abril!
O tempo voa!

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