20 de junho de 2005

As portas ao lado

"É um menino. Chama-se Gustavo como o pai.”
In A Porta ao Lado, de Guilherme de Melo

Esta é a história de Guto.
Claro que Guto é um diminutivo carinhoso para Gustavo, aliás Pedro Gustavo. Pedro porque o avô era Pedro. Gustavo porque o pai era Gustavo. Ambos tinham já morrido, quando Guto nasceu.
Nasceu, ou entrou na vida, pela porta certa. Rodeado de mulheres, criado por mulheres e afogado em mimos pelas mulheres, mãe, avó e criada velha, Guto confessa não ter sentido a falta de um pai. Tinha tudo. Só não tinha um pai. Mas sabia que tinha tido e quem ele era. Havia uma fotografia. A mãe contara-lhe que o pai não o chegara a conhecer. Morrera antes dele nascer.
Num romance narrado pelos próprios protagonistas a duas vozes, vai-se desenrolando a verdade. Marta Lemos é professora do Liceu e faz traduções. Estas actividades preenchem-lhe a vida intelectual, enquanto a vida afectiva é preenchida pelo filho Guto, o filho que ela tanto desejou e a quem deu tudo o que uma mãe pode dar: colo, conforto, amor e ensinamentos para o caminho.
Contudo, a vida de Marta nada tem a ver com os sonhos que alimentou, quando adolescente e estudante se apaixonou por Gustavo. Ela em Letras, ele em Direito. A vida dos dois é o retrato fiel dos estudantes dessa época. As convenções começavam a cair, mas ainda havia algum caminho a percorrer. No meio desse caminho, a guerra colonial roubou-lhes os sonhos. A guerra acabou, mas Gustavo não voltou. Uma mina traiçoeira, ainda teimosa em continuar a guerra, tirou a vida àquele soldado já em missão de paz.
As recordações de Guto da primeira infância estão todas no meio daquelas mulheres, dentro daquela grande casa de família, em Castelo Branco. As memórias da família são as da família da mãe e das primas, da tia Mena, que tanto contribuíram também para o excesso de mimo.
Um dia, casualmente, Guto descobre um retrato igual ao que a mãe conservava em casa, o retrato do seu pai. E uma evidência abanou-lhe os nervos todos do corpo, deixando-o sem saber o que fazer. O seu “pai” tinha morrido dois anos antes do seu nascimento. Tinha que procurar a verdade! Ela estava certamente guardada a sete chaves entre as coisas mais íntimas da mãe.
Procurou e encontrou vários recortes dos jornais. Entre eles uma notícia com vinte e três anos, a sua idade. Um bebé tinha sido raptado na Costa da Caparica , perto da Fonte da Telha. Tinha dois meses e chamava-se Abílio. Guto não sabia o que fazer com esta nova identidade. Agora tudo se tornava muito claro na sua cabeça.
Disfarçado de jornalista, visitou a sua família natural. Não reconheceu naquela mãe, a sua mãe, nem naquele pai, o seu pai, sonhado e idealizado pela ausência. Eram pobres e o que mais os interessava era saber como teriam direito ao pequeno apartamento da Picheleira, que estava arrendado em nome da avó. Uma avó doente assistia a estas discussões patéticas e pedia “Fanta”, saindo apenas da sua boca um som semelhante a “anta”. Mais do que pobre, tudo era lúgubre.
Depois de conjecturas várias, a opção tinha que ser dele. E para não magoar nem a mãe que o “trouxe no ventre”, nem a mãe que fez dele “o filho bem amado”, devia guardar para si esta descoberta. “E é o que é, apenas porque, ao invés de nela ( na vida) ter entrado pela porta que me estava reservada desde o berço, nela entrei pela porta ao lado.”
Esta conclusão inquieta do Guto, remeteu-me para as minhas próprias inquietações, para as mais remotas. Muito criança, disseram-me que a idade da razão se atingia aos sete anos. A partir daí sim, todos os pecados contavam e eu admiti-o porque, nesses tempos, havia tempos muito exactos para tudo.
Antes dessa idade atormentou-me um pensamento que só a crença na sorte (que já deve ter nascido comigo) me desatormentou. Eu desconhecia em absoluto o que era a herança genética. Sabia lá por que é que uns era mais claros e outros mais escuros!
Um dia recordo-me de passar em frente às casas onde moravam os pobres que, em África, eram negros. As casas dos pobres em África eram palhotas. E as crianças pobres em África andavam descalças e nuas, com muito ranho no nariz. Como eu não conhecia meninos brancos nus e descalços e com ranho no nariz, a morarem em palhotas, pensei muito dentro de mim que aquilo só acontecia aos meninos que tinham tido menos sorte e tinham nascido pretos. Que sorte eu tinha tido ter nascido branca! Podia não ter tudo, mas pelo menos tinha uma casa de pedra e cal, roupa e brinquedos. Mais tarde acabei por ver meninos brancos descalços, nus e com ranho no nariz.
E, com a mesma inquietação, voltei a interrogar-me se é mesmo a sorte que determina haver ou não “a porta ao lado”.

Guilherme José de Melo nasceu em Lourenço Marques, hoje cidade de Maputo, a 20 de Janeiro de 1931, onde viveu até 1974, exercendo as funções de jornalista, no jornal Notícias. Já então se distinguia pelo carácter mais literário das suas peças. Foi sempre um homem de cultura e a integração em Portugal não foi difícil, nem a nível profissional, nem a nível literário, como provam as obras já publicadas.
Reformou-se do Diário de Notícias em 1997.

2 comentários:

Dinamene disse...

Bravo, Madalena!
Uma boa semana para ti também.

Thita disse...

Olá.
Vou ver se antes de ir de férias consigo ler tudo o que não li desde a última vez que cá estive.
Há aqui histórias muito giras mas não posso ler de afogadilha senão fico sem perceber nada. :lol:
E como estas Colecções não saiem daqui, hihi... virei com mais tempo.

Deixo ficar um beijinho para si.
E um xi-coração.