Manuel Alegre
Viver para cantá-la
Por José Carlos de Vasconcelos
A publicação da Praça da Canção, no final da Primavera de 1965, em Coimbra, foi um verdadeiro acontecimento – poético e político. Tratou-se da revelação em livro de uma voz nova, inconfundível, interveniente, militante, que aliás nos meios estudantis já era muito conhecida e nos meios de combate à ditadura, em geral, já o começava a ser. Manuel Alegre tinha sido actor no TEUC, pertencido a listas de esquerda nas eleições para a Associação Académica, «discursara» em manifestações estudantis, a Trova do Vento que Passa, cantada por Adriano com música de António Portugal, já se transformara numa espécie de hino de resistência, o poeta já tinha sido chamado para a «tropa», estado na guerra colonial e na cadeia, partido para o exílio.
O livro saiu, rodeado de grande segredo (obviamente iria ser apreendido pela polícia política), terceiro título do «Cancioneiro Vértice», uma colecção editada pela conhecida revista do mesmo nome, ligada ao neo-realismo, para cuja redacção, em 1961 ou 62, entraram quatro jovens: Alegre, Fernando Assis Pacheco, J. A. Silva Marques e eu próprio. Pouco depois os dois primeiros seriam chamados para a «tropa» e iriam para a guerra, para Angola, Silva Marques sairia de Coimbra e passaria à clandestinidade, e fiquei só eu (quatro ou cinco anos mais novo e «isento» do serviço militar). Aquela colecção iniciara-se, aliás, com Cuidar dos Vivos, do Assis, em 63, a que se seguiu o meu Corpo de Esperança, em 64.
O impacto de Praça da Canção foi enorme, é difícil a quem não viveu esses tempos imaginá-lo. O Manel (como os amigos lhe chamavam e chamam) sofreu as agruras do exílio em Paris e depois em Argel (onde foi redactor e «locutor» da rádio Voz da Liberdade), tornou-se uma figura muito destacada da luta anti-fascista. Entretanto publicou, em 1967, O Canto e as Armas, que amplia o registo de Praça da Canção, no qual o exílio (o seu e o dos portugueses em concreto, e o exílio como metáfora) tem um grande peso; e, em 1971, o «poema dramático» Um Barco para Ítaca.
Em 1974, com o 25 de Abril e a liberdade, regressa a Portugal, e a partir daí progressivamente vai publicando mais e mais, primeiro só poesia, depois prosa, sobretudo ficção (romance, conto, novela), ensaio criativo, textos políticos. Seria ocioso estar aqui a recensear a sua já vasta bibliografia, assinale-se apenas que, vencendo os (no mínimo) «preconceitos» de muitos críticos e literatos, a sua obra cada vez mais se foi impondo a todos os níveis, sobre ela têm escrito os mais relevantes ensaístas e já recebeu significativas distinções, entre as quais o Prémio Pessoa. Ao mesmo tempo, Alegre manteve uma constante actividade política. Deputado há 30 anos, desde a Assembleia Constituinte, é vice-presidente do Parlamento. No último Congresso do PS, em 2004, aceitou ser candidato a secretário-geral do partido de que tem sido destacado dirigente. E o seu nome é dos mais referidos como eventual candidato a Presidente da República, no início de 2006.
Os 40 anos de Praça da Canção são assinalados designadamente com uma edição especial do livro (ed. Dom Quixote), em «texto definitivo», com belos desenhos de José Rodrigues e um bom prefácio de Paula Morão, que se vem somar ao que de melhor escreveram sobre o poeta Eduardo Lourenço, Maria Helena da Rocha Pereira, Carlos Reis, Mário Sacramento, Victor Aguiar e Silva, entre outros. Oportunidade para um longo diálogo, sobre a poesia e a vida, nele tão inextrincavelmente ligadas (e daí o título desta ‘tirado’ de García Márquez) de que aqui fica o essencial.
Jornal de Letras: Começamos pelo pretexto próximo desta conversa, que são os 40 anos de Praça da Canção. Como é?...
Manuel Alegre: É uma memória muito viva. Em mim e nas pessoas dessa geração. Mas também há malta nova que sabe esses poemas. Tenho ido a escolas, sobretudo quando se comemora o 25 de Abril, e embora de forma não generalizada vejo que isso acontece, graças ao trabalho de alguns professores. Seja como for, 40 anos são 40 anos. O que queres que te diga?
Vamos então a ‘factos’: Praça da Canção, até hoje, quantas edições teve e quanto exemplares terá tirado?
Que eu saiba, deve andar à volta das 13 ou 14 edições autónomas: as primeiras, as da Europa-América e as de bolso da Dom Quixote. Além delas há as incluídas na Obra Poética e outras que eu não controlei, clandestinas. Além das manuscritas e dactilografadas – porque nessa altura ainda não havia máquinas de fotocópias nem computadores. No total, acho que deve ultrapassar os 100 mil exemplares.
Deve ser o livro de poemas difundido pelo menos da segunda metade do século XX. Será?
Sim. Essa é opinião de vários editores. Talvez seja até o livro de poesia mais editado, mais difundido e mais cantado em vida do autor. Mais, mesmo, que os livros do Junqueiro, porque as edições no seu tempo eram menores.
Qual é hoje a tua relação com os poemas da Praça da Canção e as circunstâncias em que apareceram? Ainda te marcam?
Marcam, porque correspondem a uma época decisiva da minha vida. Evidentemente que, hoje, escreveria alguns desses poemas de outra maneira - se calhar pior... Porque uma das suas forças é uma certa ingenuidade, a convicção na força da palavra. Ainda não tinha lido o Ezra Pound, nem as suas teorias sobre os cancioneiros e os trovadores. Quando os escrevi foi por impulso, por instinto, por razões não explicáveis. E isso também tem a ver com uma fase intensa da minha vida.
A fase de Coimbra, das lutas estudantis...
... e, depois, já na tropa, dos Açores, onde escrevi alguns desses poemas, nomeadamente «País de Abril», agora, na edição definitiva, dedicado ao Melo Antunes, a primeira pessoa a quem o li. “País de Abril” que esteve para ser o título do livro, o que só não aconteceu por causa da canção “Avril au Portugal” – podia parecer uma coisa turística. Claro que, nessa altura, não me passava pela cabeça que ia haver uma revolução num mês de Abril e o Melo seria um dos seus líderes.
E depois dos Açores, Angola, a guerra, a prisão.
Apesar dessa vida muito atribulada, eu escrevia intensamente. A poesia foi quase como uma casa, um abrigo, um refúgio, uma forma de resistir a essa situação. Além disso, também tinha a convicção (como tu e outros, acho que todos partilhávamos isso) de que pela palavra poética se podia mudar a realidade, se podia mudar o País. O que está presente nesses poemas. Não esqueço as circunstâncias em que escrevi alguns deles. Por exemplo, naquela altura fazia poemas de cabeça e só depois os passava ao papel. Quando estive na cadeia, isolado durante um largo período, sem caneta e sem papel, fiz e memorizei alguns desses poemas, que só mais tarde escrevi. Isso aconteceu-me muitas vezes.
Como Camilo Pessanha.
Exactamente. O que só mais tarde vim a saber. Nessa época, a poesia tinha para mim uma marca muito oral. Sentia a necessidade de dizer o poema para mim mesmo, e até de o dizer a alguém, às vezes antes de o escrever. O que marcou a minha poesia e talvez explique o seu tom cantabile. Hoje não tenho essa necessidade nem faço isso: quando escrevo, é mesmo um acto de caneta e papel.
A oralidade seria influenciada também pela tua passagem pelo teatro e pelos ‘discursos’ nas lutas académicas?
Talvez. E pela poesia oral, sei lá. No TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, dirigido por Paulo Quintela), nós dizíamos muita poesia. De qualquer forma, antes de saber ler, eu já sabia poemas de cor. Os meus pais diziam-se poemas, acompanhavam-se à guitarra e cantavam o fado. A minha mãe era uma repentista fantástica, a cantar ao desafio era imbatível. E tinha uma tia-avó, Maria do Carmo Sampaio, mãe do pintor Fausto Sampaio, que me lia muita poesia. Ensinou-me poemas de António Nobre, Garrett, Guerra Junqueira, até do António Sardinha – porque era monárquica, integralista, ao contrário do irmão, o meu avô, que era republicano, carbonário. O meu pai também me lia versos de Camões e de outros poetas
Qual o primeiro poema de que te lembras?
Lembro-me de, muito pequeno, subir para cima de uma cadeira e recitar um poema, cujo autor não sei quem é, que começava «Lá vão elas, as caravelas». São estes os primeiros versos de que me recordo. Mas também recordo, além dos versos dos fados e dos que me lia a minha tia-avó, incluindo do Cancioneiro de Garrett, da «Nau Catrineta», de «Estava a bela Infanta no seu jardim assentada», dos romances que os ceguinhos cantavam na Rua de Baixo, em Águeda.
Na escola ou no liceu algum professor te influenciou?
No Liceu Alexandre Herculano, no Porto, onde andei, houve um professor que me marcou muito: o António Cobeira, de quem falo num conto de O Homem do País Azul. Fora amigo íntimo do Fernando Pessoa (que uma vez mandou para a Renascença Portuguesa poemas seus) e do Mário Sá-Carneiro, dos quais falava muito. E revelou-me o Sá Carneiro, um poeta importante para mim nessa fase, que também tem uma grande estrutura rítmica. Além disso ele lia poesia, leu-me o soneto de Arvers, que traduzi em Rouxinol do Mundo: nunca o vi escrito, mas nunca mais o esqueci.
E em Coimbra?
Comecei a ler o Rilke e o Hölderlin, por influência do Paulo Quintela. Escrevi mesmo, nessa altura, uma poesia muito empastada, uma grande trapalhada, onde havia marcas dos dois. Mas aí o importante foi o contacto com o Lousã Henriques, com o Herberto Hélder, que passava temporadas em minha casa, com o (Fernando) Assis (Pacheco). O Assis era de todos nós o que lia mais poesia (poetas franceses, ingleses, muito os espanhóis) e se calhar o que sabia mais.
Até que...
... de repente, a minha linguagem soltou-se. Voltando, digamos, a uma estrutura rítmica mais cantabile. Os poemas começaram a aparecer feitos. Os poemas, as trovas. As primeiras foram publicados na Via Latina, em 1961 ou 1962, eras tu o chefe de redacção: a Trova do Amor Lusíada (que mais tarde a Amália haveria de cantar), com um desenho do Topi, em separado, depois uma página inteira com cinco poemas.
A Trova do Vento que Passa, que ficou como um símbolo e uma bandeira, até hoje, já é de 1963, não?
Não. 1964. Venho de Angola, da cadeia, estou com residência fixa em Coimbra, recordo absoluta e exactamente o momento em que ‘nasceram’ os seus primeiros versos. Eu vinha de casa, ia a atravessar a Praça da República com o Adriano (Correia de Oliveira) e havia uns pides a seguir-nos, a minha vida já estava a ficar muito negra. O Adriano disse, «lá vêm eles». E, de repente, saíram-me os últimos versos: «Mesmo na noite mais triste/ em tempo de servidão,/ há sempre alguém que resiste,/ há sempre alguém que diz não». E o Adriano comentou: «Isso é uma coisa fantástica. Agora tens que escrever o resto. Porque podes nunca mais escrever nada, mas esses versos vão ficar, para sempre, na memória de todos». Mal ele imaginava que isso em parte viria a acontecer graças à sua interpretação da música que para ela escreveu o (António) Portugal.
Ler texto completo no JL
2 comentários:
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