A VIDA DOS PARDAIS
Destaque: "A humanidade divide-se entre aquelas pessoas que são capazes de apertar a mão a um político, e as que não são. Eu sofro de um excesso de civilização - não sou."
"Não sou pessimista", assegurou o pessimista: "mas o que hei-de fazer se o mundo é um lugar péssimo?"
A pergunta não presumia uma resposta. Parecia uma citação. O pessimista ergueu o copo e bebeu mais um gole de vinho. A mulher, Flávia, trinta anos mais nova, com uma longa cabeleira dourada, solta, que lhe chegava à cintura, repetiu-lhe o gesto. O optimista riu-se:
"Eu cá gosto do mundo. Há muitas coisas terríveis, guerras, fomes, epidemias, homens-bombas, desastres ecológicos, música pimba, enfim, o que vocês quiserem, mas viver é maravilhoso!"
Os outros olharam-no com estranheza, senão mesmo (um ou outro) com mal disfarçada hostilidade. Raramente alguém ousava contestar o pessimista.
"Vejam bem, o Natal, as multidões enchendo as ruas! Eu gosto disto, da alegria das crianças, das luzes nas árvores, da ideia de que, quando Dezembro chegar ao fim, nos será dada a possibilidade de apagar os nossos erros e recomeçar tudo outra vez. Ano novo, vida nova. Ah, que maravilha!..."
"Odeio o Natal", cortou, sombrio, o pessimista: "Puro mercantilismo. Odeio em particular a figura do Pai Natal. Às vezes imagino-me na pele de um serial killer especializado em degolar Pais Natais..."
A ideia divertiu o grupo. O pessimista não tinha aspecto de serial killer. Era um homem já de certa idade, isto é, passara a idade em que seria possível imaginá-lo a degolar Pais Natais. Vinha de uma família com dinheiro e um nome nobre e sonante. Mantinha, apesar dos anos, uma forma física invejável, seco, sempre muito direito. As mulheres achavam-no charmoso. Ele não gostava da palavra. Ironizava:
"Isso a que vocês chamam charme não é outra coisa senão a simples combinação entre boa postura e boa educação."
O optimista, pelo contrário, era um sujeito um tanto desajeitado, nascido e criado numa remota aldeia alentejana (definia-se a si próprio como um luso-alentejano), que subira na vida a muito custo, mas sem nunca perder a gargalhada franca, e a capacidade de rir das próprias desgraças. Estavam numa varanda debruçada sobre o casario, o rio quase ao alcance da mão. Entardecia. Alguém lembrou o espectáculo melancólico da campanha eleitoral para a Presidência da República. Um outro comensal, um homem triste, pálido, condenou o vazio de ideias, e o afã populista dos candidatos:
"Eu não poderia ser político. Não seria capaz de andar mergulhado no meio das multidões, a beijar criancinhas e peixeiras, cartomantes e carteiristas, eu sei lá!, a apertar a mão a desconhecidos."
O pessimista concordou. Ele ia além. O que mais o horrorizava era apertar a mão promíscua dos políticos que afagavam as multidões:
"A humanidade divide-se entre aquelas pessoas que são capazes de apertar a mão a um político, e as que não são. Eu sofro de um excesso de civilização - não sou."
O optimista era tão optimista que, inclusive, acreditava nos políticos, ou pelo menos em alguns políticos, e na democracia. Aquilo pareceu a todos um exagero. Riram-se com gosto da ingenuidade dele. Bem, todos não. Flávia ouviu-o com atenção. O optimista não se esforçava por alcançar a aprovação dos outros. Falava com paixão das vidas minúsculas dos pardais e dos matizes das rosas que plantava no jardim. Ouvindo-o falar a vida parecia um facto inédito, uma festa. Flávia reparou que ele tinha umas mãos bonitas, eloquentes, marcadas pela dureza do passado, mas de unhas limpas e bem cuidadas. Gostou da forma como sorria. Houve um momento de silêncio. A seguir o pessimista propôs que criassem ali mesmo uma associação secreta destinada a eliminar do planeta a figura rídicula do Pai Natal. Flávia não se riu.
O sol inclinou-se gravemente, diante deles, como um mordomo antigo. Tocou com os cabelos em chamas a lenta água em movimento. O pessimista fechou os olhos, absorto, enquanto em redor a luz se extinguia. Quando os reabriu Flávia fora-se embora. O optimista também. Juntos, mas isso ele só descobriu alguns dias depois.
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