15 de março de 2008

O MEC, de volta!

O dia da operação, no Público, 14.03.2008
Enquanto o leitor trincava a sua torradinha estava eu virado de lado, como uma corpulenta odalisca, a sentir tremer as ancas sob o efeito do ópio epidural e as burilações do Black & Decker do cirurgião ortopédico. Enquanto os ossos do leitor avançam naturalmente para a decrepitude, um dos meus - a minha anca novinha em folha - terá escassas horas de uso, com todas as suas danças do ventre ainda pela frente. Como os ossos são o que fica de nós além da morte, os hospitais ortopédicos têm uma dignidade especial. Não é apenas dos vivos que cuidam - também estão a ajudar os arqueólogos dos séculos vindouros. Se hoje posso estar um bocadinho gordo, consola-me que daqui a uns séculos seremos todos magros. As ossadas parecer-se-ão muito umas com as outras. Descontada a carne, até é provável que o meu esqueleto seja considerado mais bem constituido do que o do trinca-espinhas do Brad Pitt. Mas esses ossos serão ninharias para os arqueólogos. Onde a vassourinha há-de deter-se é na beleza da minha prótese. Depois de soltá-la e soprá-la, hão-de flecti-la nas mãos, admirando a engenhosa construção e pronunciando-a avançadíssima. Para a época, claro. Acabará, com certeza, nalgum museu, junto às ferramentas da idade do Bronze. Como merece. Há uma breve parte da nossa vida em que os ossos se substituem a eles próprios. Mas depois dessa ilusão dos dentes de leite, nunca mais é a mesma coisa. Ao contrário das caudas das lagartixas e das pinças das sapateiras, os humanos têm de recorrer ao exterior para substituir as peças faltosas. Numa primeira fase, são peças pequenas e exteriores, como coroas dentárias. Depois já são necessárias peças maiores e interiores, como a minha anca. Aproveitem bem os dentes de leite, que essa mama não volta a acontecer! Miguel Esteves Cardoso

2 comentários:

calamity jane disse...

obrigada, s'tôra! Pelo MEC, pelo BB, pelo FF... entretiveste-me durante um bom bocado. Como é bom ler quem sabe escrever!

th disse...

Conheci o MEC através de "A Causa das Coisas" e de o ver, lacinho e ténis, no "Frágil", no Bairro Alto.
A caricatura que faz do português comum é fruto de uma observação acutilante, só dele.
Fiquei por aqui uns bons momentos de leitura, obrigada, theo