27 de agosto de 2008

Bénard da Costa, no Público

domingo, 3 de Agosto de 2008
Memórias da imaginação
A minha Mãe costumava dizer que no dia em que nasceu (24 de Agosto) andava o Diabo à solta. Não se referia a 24 de Agosto de 1906, dia em que passou doutra vida a esta, mas a um 24 de Agosto que nem ela nem nenhum de nós, nem nenhum dos que estavam em vida em 1906, conhecera, senão como conhecemos quase tudo: pela memória da imaginação histórica, no caso concreto a memória da imaginação histórica de 24 de Agosto de 1572. Nessa noite - noite de São Bartolomeu, o Apóstolo que morreu esfolado vivo - Catarina de Médicis convenceu seu filho, o timorato Carlos IX, rei de França, a dizimar o partido huguenote. O sinal foi dado pelo sino da igreja de Saint-Germain l' Auxerrois, em Paris, e três ou quatro mil protestantes parisienses foram barbaramente assassinados. A província seguiu a capital, com mais mortes e mais terror. Católicos exultaram e o Papa Gregório XIII, ao saber da chacina, em Roma, mandou cantar um Te Deum. Com os tempos, sobretudo com a conversão do huguenote Henrique de Navarra, futuro Henrique IV, ao catolicismo ("Paris vaut bien une messe") e com a promulgação do Édito de Nantes, que reconhecia a liberdade de culto aos protestantes, a festança dos católicos fanáticos deu lugar ao opróbrio e por isso se passou a dizer que, na noite de 24 de Agosto, andava o diabo à solta.
Nessa mesma data, regressado ao seu castelo no Périgord, no alto de uma colina (a "montanha" que deu o nome a Michel Eyquem, a 28 de Fevereiro de 1533) o Sieur de Montaigne escrevia o capítulo 20 do primeiro livro dos seus Ensaios, sob o título De Filosofar como Aprender a Morrer.
Na sua biblioteca, lia-se a famosa inscrição que ele mandou gravar em latim: "No ano do Senhor de 1571, com a idade de trinta e oito anos, na véspera das calendas de Março, aniversário do seu nascimento, Michel de Montaigne, há muito cansado da servidão ao Parlamento e a todas as outras funções públicas, mantendo intactas todas as suas faculdades e todas as suas forças, retirou-se para o seio das doutas virgens, onde, em repouso e segurança, passará os dias que lhe restarem de vida. (...) Privado do amigo mais doce, mais querido e mais íntimo, como o nosso século jamais conheceu outro que melhor, mais sábio, mais aprazível e mais perfeito fosse, Michel de Montaigne, querendo consagrar à saudade desse amor mútuo testemunho único de reconhecimento e não achando modo de melhor o exprimir, dedicou a essa memória o estudioso edifício que lhe servirá de delícias." A dedicatória percebe-se melhor, se se souber que a biblioteca lhe fora deixada em testamento pelo amigo de que fora privado.
O "amigo mais doce, mais querido e mais íntimo" era Etienne de la Boétie que Montaigne conhecera em 1557 (tinha ele vinte e dois anos, Etienne vinte e seis) e que morreu seis anos depois, pouco antes de completar 33 anos, a 18 de Agosto de 1563.
"Parce que c'était lui; parce que c'était moi" foi a frase famosa em que Montaigne resumiu a razão (se razão é palavra a usar) do amor que os uniu.
Na dedicatória à Ménagerie de Xenofonte (tradução de La Boétie), Montaigne fez publicar a carta que escrevera ao pai contando-lhe "algumas particularidades que observou na doença e na morte do falecido Monsieur de La Boétie".

Há duas passagens mais particularmente perturbantes nessa longa e minuciosa descrição da agonia de um ser amado, que durou precisamente nove dias e nove noites.
Ao quinto dia, um domingo, Etienne entrou em grande prostração. Quando voltou a si, disse que lhe parecia ter estado numa "confusion de toutes choses" e só ter visto uma nuvem espessa e um nevoeiro obscuro, no qual tudo se misturava, desordenadamente. Mas nada disso lhe fora desagradável. "A morte não é pior do que isso, meu irmão", disse-lhe Montaigne, ouvindo-o. "Mais n'a rien de si mauvais" respondeu-lhe ele. Não traduzi a frase, como acima não traduzi a "confusion de toutes choses", porque apesar da transparência das frases, no francês de Montaigne, sempre hesitei na transposição. "Não há nada tão mau" ou " não há nada de muito mau"?
"Irmão, amigo", chama, muito perto do fim, La Boétie. "Ah se soubesses as imaginações que venho de ter (...)." Como são elas, meu irmão? "Grandes, grandes" respondeu o moribundo que, perante a insistência de Montaigne, acrescentou: "Admiráveis, infinitas e indizíveis."
Mas, mesmo à hora de morrer, "começou a pedir-me, com extrema afeição, que lhe guardasse um lugar, repetindo o pedido tão numerosas vezes que eu tive medo que ele entrasse a perder a razão. Mas, embora lhe dissesse muito docemente que ele se estava a deixar arrastar pela doença e que o pedido não se assemelhava a algo com siso, a minha fala não o abalou, antes clamou ainda com maior brado: 'Irmão, irmão, porque me recusas um lugar?' Tentei então convencê-lo pela razão. Disse-lhe que se ele falava e respirava era porque tinha corpo e logo tinha um lugar. 'Um lugar talvez tenha, mas não aquele de que preciso' (...) Há três dias que anseio por partir". Foram as últimas palavras de La Boétie.

No capítulo 20 dos Ensaios, Montaigne revem incessantemente à morte do amigo (sem o citar). "Porque é que se receia tanto perder uma coisa que, uma vez perdida, não pode mais ser lastimada? (...) Àquele que disse a Sócrates: 'Os trinta tiranos condenam-te à morte', Sócrates respondeu: 'Como a natureza os condenou a eles.'
Porque bizarria nos atemorizamos tanto com a passagem para a isenção de todas as dores!
Tal como ao nascermos todas as coisas nasceram para nós, assim a nossa morte ditará a morte de todas as coisas. É tão insensato chorar sobre o que não viveremos daqui a cem anos como chorar o que não vivemos há cem anos. A morte é a origem de outra vida. E tal como chorámos ao entrar nesta, assim cessará a causa das nossas lágrimas ao dela sairmos. (...)
O primeiro dia depois do nosso nascimento leva-nos tanto a morrer como a viver. (...) A obra continuada da nossa vida é a construção da morte. Já estamos na morte quando estamos na vida. Ou, se assim preferirdes, estamos mortos depois da vida. Mas, durante a vida, estamos a morrer e a morte atinge mais rudemente o moribundo do que o morto. Mais vivamente e mais essencialmente, também."
Tanto quanto eu saiba é a primeira vez que se distingue tão fundamente a morte e o "morrer". Quanto mais o homem se afeiçoar à ideia da morte, menos difícil lhe será a passagem para o lado de lá.
A morte deixou de ser a terrível e misteriosa passagem para um "lado de lá" que não sabemos como é. A morte é a transformação de uma forma noutra forma.

Visto do ponto de vista de Montaigne, do ponto de vista do lugar que Etienne de la Boétie queria ocupar e tanto pediu ao amigo que o deixasse ocupar, não prova o desenfreamento do diabo mas apenas o lugar do mal que nós próprios fizemos.
"A morte não nos afecta, nem quando formos mortos nem quando estamos vivos. Quando estamos vivos porque não estamos mortos; quando formos mortos porque já não estamos vivos."
Montaigne recorda Quíron que recusou a imortalidade quando o próprio deus do tempo, Saturno, seu pai, o informou da condição dela. "Se não houvesse a morte, mil vezes me amaldiçoaria de vos ter privado dela", são palavras do deus.
Muitos anos depois, Rilke terminou o décimo segundo soneto da segunda parte dos Sonetos a Orfeu, sustentando o que "a metamorfoseada Dafne / quer, desde que em loureiro sente, que te mudes em vento".
"Ser sempre morte em Eurídice." A nossa imaginação sobre a nossa memória? Talvez antes, a nossa memória sobre a nossa imaginação.
Coisas que nem sequer imaginamos de tanto as havermos esquecido ou que só lembramos quando as imagens deixarem de ser infinitas e indizíveis ou forem finalmente infinitas e indizíveis.
Agosto, que agora começa, é o mês do manto de Eurídice, quando memória e imaginação se confundem e uma forma se transforma noutra forma. Hoje, apareceram-me Montaigne e Rilke, cantores da morte. Mas também a curva do Forte, a mão da Mãe, e o mar a brilhar tanto que tamanha luminosidade convocava uma treva súbita e logo suspensa, até que o vento em vento nos mudasse.

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