22 de outubro de 2009

...que seria de nós se não sonhássemos. Saramago

Hoje, os jornais dizem que a Basílica do Convento de Mafra se encheu de gente, que quis assistir ao Concerto de Órgão.
Será Mafra ainda o destino saloio dos Lisboetas, ao domingo à tarde?
Até lá chegarmos há moinhos na paisagem e as trouxas na Malveira. Bem perto, a Olaria do Zé Franco! E o velho oleiro ali está, moldando as suas figuras. Oferece um copo de vinho e pergunta, com simpatia, se gostamos daquele lugar.
Em Mafra, terra propriamente dita, todos os caminhos vão dar aos sinos do famoso carrilhão do Convento. Ouvem-se num raio de quinze quilómetros. Os duzentos e vinte metros de comprimento tornam este monumento uma verdadeira omnipresença naqueles lugares, que recendem uma respeitável tranquilidade histórica.
Mas não vamos poder falar de tranquilidade, se vamos falar do Memorial do Convento.
Nem do Convento! Como é que uma arquitectura tão imensamente grande, tão intensamente grandiosa, nasce da inquietação da alma de quem não consegue gerar um filho varão?
Só obra desta dimensão pode dar verdadeiramente graças ao poder divino, que aquietou o rei D João V e a rainha D. Maria Ana. Ou porque frei António de S. João tem razão, ou porque as preces repetidas de Dona Maria Ana Josefa foram finalmente ouvidas, a real barriga da humilde e submissa rainha vai finalmente crescer.
Mas o rei e a rainha não são as personagens principais deste romance histórico, que nos embala num ritmo quase balançado de quem fala ou de quem ouve, como se tivesse sido escrito, para ser dito. Os protagonistas têm nobreza na alma, mas são povo de condição. À excepção do Padre, que pertencendo à habitualmente classe privilegiada, se aproxima de quem se acha próximo: o homem e a mulher, os verdadeiros, aqueles que sonham como ele sonha, que têm visões, com quem pode partilhar a sua alucinação e o seu segredo: o voo e a passarola.
O homem é Baltasar, o Sete-Sóis. Um ex-soldado. Perdeu a mão, tem agora para seu lugar um monte de ferros guardados. Pedinte em Évora. Na primavera, dirige-se a Lisboa. Pernoita em Aldegalega. ”Passou a noite em paz.” De manhã cedo, a maré é boa, paga a passagem e atravessa o rio. ”Na outra margem, assente sobre a água, ainda longe, Lisboa derramava-se para fora das muralhas.” Há-de seguir para Mafra, para abraçar a mãe, Marta Maria, que não sabe se o filho é vivo ou morto, por isso o julga morto ou vivo.
A mulher é Blimunda, filha de Sebastiana Maria de Jesus. Tal como a mãe, ela tem poderes: vê dentro das pessoas. Para que isso não aconteça, logo de manhã, deve quebrar o jejum, antes de abrir os olhos. Mas promete a Baltasar nunca o ver por dentro.
O Padre é Bartolomeu Lourenço, mais tarde, Gusmão, depois de ser Doutor da Igreja. Fala a Baltasar dos seus projectos de voar. Por isso, lhe chamam o Voador. Afirma-lhe que já voou ao que o pobre replica que só pássaros e anjos voam. Ou os homens quando sonham. “...mas em sonhos não há firmeza.” Mas o Padre contrapõe: “O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará...” Mostra a Baltasar um desenho do seu engenho voador. Baltasar vê o desenho de um pássaro e acredita que o homem pode voar.
E são tantos os momentos tocados pela magia dos bons sentimentos de Baltasar, de Blimunda e do Padre Bartolomeu Lourenço! Porque puro e mágico é o seu pensamento. Um pensamento que pensa Deus misericordioso, Deus que vê directamente nos corações. “...e se os pecados forem tão graves que não devam passar sem castigo, este virá pelo caminho mais curto (....)se entretanto as boas acções não compensarem por si mesmas as más....” Estas são considerações tecidas à cabeceira de Blimunda, quando ela adoece, ninguém sabe de quê. Quando Blimunda sai daquele torpor, a máquina de voar está pronta.
E voam. Voam naquele céu de que o povo tanto espera, mas para o qual pouco olha. Acompanha-os um milhafre. A máquina cai, mas os três estão sãos e salvos.
O Padre desaparece e morre em Toledo. Baltasar também desaparece. Blimunda espera por ele. A angústia de uma espera frustrada perpassa a última parte deste romance. Com essa angústia procura-o, julga mesmo poder encontrá-lo, no dia da sagração.
Mas só o vai encontrar nove anos mais tarde. É um dos onze que ardem no fogo da Inquisição.

Leitura sugerida: O Memorial do Convento de José Saramago
José Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, Ribatejo. Teve numerosos empregos e diversas profissões: foi serralheiro mecânico, editor, jornalista...A sua primeira obra data de 1947, Terra de Pecado tendo-se seguido um longo período sem qualquer publicação.
Em 1993, já autor consagrado, retirou-se para Lanzarote, onde vive desde então, com a sua mulher Pilar.
Em 1998, a mais alta distinção literária surpreende o escritor em pleno aeroporto de regresso a casa. Vinha da Feira Anual de Frankfurt. E regressou à Feira, onde o esperavam as primeiras emoções e as primeiras rosas. As primeiríssimas, viveu-as sozinho, segundo conta, nos intermináveis corredores do aeroporto, depois de ter sido chamado ao telefone, para lhe comunicarem a razão pela qual não devia embarcar.

3 comentários:

gabriela disse...

Muito interessante este seu post, Mafra é a minha terra um abraço

rabina disse...

Quem não sonha simplesmente não é humano...

May Alek disse...

Que delícia ler este post e relembrar este livro de Saramago que li há muitos anos atrás.

Obrigada pela visita ao meu blog e por suas palavras.
Um beijo