10 de setembro de 2004

Altino do Tojal, autor de "Os Putos"

Altino do Tojal, autor de "Os Putos", e "o que jamais deu uma entrevista"
Altino do Tojal nasceu em 26 de Julho de 1939, em Braga. Criado por sua tia Emília, professora primária, que o ensinou a ler aos cinco anos, teve também o seu avô, professor aposentado, um importante esteio familiar. Ficou só muito novo, em circunstâncias difíceis. Seguiu-se um percurso de autodidacta, de alguém que quis ser, única e simplesmente, escritor, embora, «por razões de pão mais vinho», viesse a trabalhar em vários jornais. Numa obra que contempla contos, romances e novelas, é fundamentalmente conhecido pelo livro Os Putos que já vai na 28ª edição e foi adaptado ao teatro, à televisão e à banda desenhada. A primeira versão de Os Putos surgiu em 1964, ainda com o título Sardinhas e Lua. A partir daí sucederam-se as edições e o livro não tem parado de engrossar. A mais recente edição, abrangendo 145 histórias, acaba de ser publicada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, num alentado volume de quase 700 páginas. Esta edição de Os Putos: contos da luz e das sombras assinala, sem dúvida, a sua entrada no Cânone. «Bastaria este livro para que o seu autor não pudesse ser esquecido», como escreveu José Blanc de Portugal.
Altino do Tojal, o contador de histórias, «aquele que nunca aparece na televisão, o solitário, o bicho do mato, o que jamais deu uma entrevista», no seu dizer autobiográfico, acedeu, relutante, a vir a público...
A Página (Luís Souta) - Sabe-se pouco da sua bibliografia...

Altino do Tojal - Pouco mais que nada, de facto, o que nunca me preocupou muito. Senti que se adensava o silêncio à minha volta, mas depressa me conformei. Se a minha obra tivesse a importância que eu lhe atribuía, o tempo se encarregaria de lhe prestar justiça. E como já transcorreram 37 anos após a primeira edição de Os Putos e as reedições continuam a suceder-se...

- Fala-me da sua infância.

- Dois membros da minha família marcaram-me profundamente: a minha tia Emília e o meu avô. A minha tia Emília levava-me consigo para as aldeolas onde dava aulas: S. Pedro de Valbom, Valdezende... Tempo ainda de iluminação a petróleo, de carros de bois a lamuriar por caminhos primitivos... Acompanhei minha tia nos meus cinco, seis anos. Não tinha ainda idade para andar na escola, mas ela exigia de mim o mesmo que exigia aos alunos.

- Teve uma excelente "pré-primária"...

- Assim o creio. Era uma aventura, um deslumbramento. Ir às segundas-feiras de Braga para essas aldeias era para mim, criança ávida de descoberta, verdadeira magia, magia pura. Mal nos apeávamos da camioneta, lá estavam os garotos à nossa espera. As miúdas ofereciam à senhora professora ramos de flores silvestres e os rapazitos exibiam-se em gritaria heróica, descalços, limpando o monco (risos) à manga do casaco e deixando nela uma espécie de rasto de lesma...

- Uma festa, a chegada da professora?

- Sim, era uma festa. Nós por aqueles caminhitos rumo à escola, à velha escola, minha tia à frente com aquelas flores todas como uma santa num andor. Parecia uma galinha seguida pelos pintos. (Risos). As mocinhas muito compenetradas e sorridentes, os rapazitos aos pinotes, com berros de assustar índios...

- Você conta, com graça, o percurso das professoras...

- Era sempre a mesma coisa. Viajavam numa camioneta incrível, focinhuda, que largava fumo e poeirada e nas subidas gemia que metia dó. De aldeia em aldeia, a camioneta ia parando e em cada paragem apeava-se uma professora, com o respectivo bando à espera. Até que chegava a nossa vez. Tagarelando na camioneta, as professores comentavam animadamente o filme romântico visto na véspera, na cidade, falavam de namoricos e falavam também, de rosto sombrio, das temidas visitas dos inspectores escolares (risos). Era assim, falavam de cinema, de amores, de moda, dos tais inspectores escolares...

- Eram pessoas que durante a semana estavam nas aldeias onde leccionavam e só ao fim-de-semana é que regressavam a Braga?

- Sim. E como se conheciam, acontecia irem às vezes juntas ao cinema. Também eu ia ao cinema com a minha tia, já que por esses tempos não havia classificações etárias. Aos nove anos, por exemplo, vi o Hamlet, do Shakespeare, numa admirável adaptação cinematográfica de Lawrence Olivier. Sabe que me impressionou muito esse filme? Foi o meu primeiro contacto com a morte, através da conhecida cena dos coveiros. Bom, acho que não foi o primeiro; o primeiro acontecera pouco antes, e mais impressivo, quando assisti à exumação dos restos mortais de minha avó. Talvez por isso, a Morte paira sobre muita da minha produção literária.

- Hoje há a tendência para afastar as crianças da imagem da morte. Acha isso negativo?

- No meu caso foi uma fonte de inspiração.

- Fale sobre a vida na aldeia, com sua tia.

- À noite, rezávamos o terço. Minha tinha era muito religiosa. Orações, orações... aquilo nunca mais acabava. Depois do rosário propriamente dito, havia que rezar pelas almas dos parentes já falecidos, uma legião interminável, e depois em prol das almas mais abandonadas. Dava-me o sono, mas eu sabia que a seguir vinha o encantamento, porque minha tia contava-me histórias antes de adormecermos. Contava-as como só ela sabia contar. Tinha um dom para contar histórias como nunca vi em mais ninguém.

- Tem ideia se ela usava esse dom na escola?

- Não, na escola não contava histórias e era, digamos, uma professora severa, competente mas severa.

- Você era o destinatário privilegiado do dom que ela tinha.

- Verdade. À noite, depois das aulas, minha tia contava-me histórias como só ela sabia contar, com um poder sugestivo quase mágico. Tomemos como exemplo A Branca de Neve e os Sete Anões, quando a princesa é abandonada na floresta. Minha tia "colocava-me" no local, falava de medos, de ameaças, de rumores sinistros. Usando onomatopeias, introduzia em mim o bracejar lamentoso do arvoredo ao luar, à hora em que pia o mocho. Tinha uma capacidade invulgar para me pôr no local da acção, com todos os sentidos alerta.

- Foi sua professora durante quanto tempo?

- Oficialmente nunca o foi, pois como lhe disse, eu não tinha idade escolar quando a acompanhava à aldeia. Depois houve um conflito familiar e passei a viver com o meu avô, então professor reformado. Meu avô perdera-se de amores pela criada (risos), minhas tias disseram-lhe que era «uma afronta à memória da mamã» e o velho, indignado, saiu de casa levando-me consigo. Começava outro capítulo da minha vida. Meu avô era muito avarento, mas criatura singular. O elemento mais ilustre de uma dinastia de campónios. Um tio dele, que era padre, tinha-o posto a estudar, a trabalhar numa farmácia e a estudar. A verdade é que conseguiu chegar a mestre-escola, como se dizia naquele tempo.

- Nunca conta histórias do seu avô relacionadas com a escola e com a profissão dele...

- Não o acompanhei no activo, já entrara na reforma. Era um velhote muito avarento, como disse, mas com um agradável toque de loucura. Levava-me amiúde à Citânia de Briteiros e divagava horas esquecidas acerca do povo rude que ali vivera, dos costumes e das lendas. Meu avô foi de certo modo o responsável pelo meu interesse pela arqueologia, que mais tarde, já adulto, me levaria a visitar tudo quanto é ruína, no Egipto, na Grécia, por sítios desses.

- Daí aquele cruzeiro no Nilo, descrito no seu livro Ruínas e Gente, não é assim?

- Já antes disso eu tentara fazer essa viagem, bem antes, nos fins da adolescência e começos da adultez. Minha tia Emília morrera há muito tempo, de cancro, e o meu avô morrera também, de velhice. Vi-me só. Era novo, tinha a cabeça cheia de sonhos, começava a escrever. Não tinha onde cair morto, mas decidi ir ao Egipto. Findava os anos 50, era o tempo da grande emigração. Enfiei as mãos nos bolsos e atravessei a fronteira, por Lindoso, descontraído, a assobiar, sem passaporte, sem dinheiro, mas com a cabeça fervilhante de projectos literários. Propunha-me atravessar uma catrefada de países, trabalhando aqui e acolá (em quê, se eu não sabia fazer nada para além de escrever?), até chegar ao Egipto, onde faria umas escavações, desenterraria uns tesouros, para depois regressar cheio de fama...

- Era a continuação das histórias...

- De certo modo. Mas a minha aventura correu mal. Fui detido e devolveram-me à procedência, por etapas, com algemas nos pulsos. Entre as prisões espanholas que conheci avulta a de Valladolid. E avulta porquê? Porque o meu carcereiro achou que devia levantar-me a moral revelando que na cela pegada à minha tinha estado enclausurado Cristóvão Colombo.

- Más recordações...

- Muito pelo contrário. Recordações excelentes, óptimo material. Não se esqueça de que eu era um contador de histórias...

- Escrevia logo?

- Ia tomando notas.

- No seu livro A Homenagem, diz a certo passo: «Felizmente trago sempre esferográfica em tudo quanto é bolso».

- Está a ver?

- E depois da emigração fracassada?

- Regressei a Braga, onde o director da Biblioteca Pública, Dr. Egídio Guimarães, me contratou para fazer uns pequenos serviços, a troco de uma uma modestíssima quantia que só dava para me hospedar numa espelunca imunda, abaixo de qualquer classificação, frequentada por pobres diabos sem eira nem beira. Situação estranha mas extraordinariamente enriquecedora, pelo contraste, pelo jogo alternante de sombras e luz. Por um lado, a espelunca, com as suas misérias; por outro, a Biblioteca Pública, aquela catedral do saber, com milhares de livros à minha disposição. Dei sequência ao caminho aberto por minha tia Emília, cultivei-me ardentemente, como autodidacta que era.

- Com a escrita sempre presente...

- Sim, vivia exclusivamente para a literatura.

- Nunca pensou noutra coisa?

- Nunca, apenas em escrever. Nascera para escrever, nada mais interessava. Convivia na Biblioteca com pessoas cultas, entre quilómetros de calhamaços fascinantes, e depois havia o programa sórdido da espelunca, com a sombria malta da valeta, os tristes, os explorados, os revoltados, essa gente. Num lado, lampadários e conversa elevada; no outro, pragas e humilhação. Um escritor não poderia desejar melhor. Para mais, o director da Biblioteca apreciava deveras as coisas que eu escrevia e não descansou enquanto não as publiquei em livro. Estava bem mais impaciente que eu... Custa a crer, mas garanto que eu não tinha ansiedade nenhuma em publicar aquilo que seria Os Putos. Era capaz de estar dias e noites virado a uma só página. Mas enquanto não considerasse que ela estava em condições de ser apresentado ao Dr. Egídio Guimarães...

- Ele funcionava como crítico?

- Como um crítico consciencioso e benévolo. Tal como acontecera com a minha tia Emília e meu avô, a sua morte abriu em mim um doloroso vazio que ainda está por preencher. Era um intelectual de fino trato, com cavalheirismos de antanho, amigo discreto mas sólido, um espírito nobre, o embaixador ideal para interceder junto do Eterno pela mesquinha Humanidade. Também intercedia por mim junto das personagens "de peso" que o visitavam na Biblioteca, mostrando-lhes o meu livro Sardinhas e Lua acabado de publicar e exagerando-lhe talvez os méritos. Foi em boa parte graças a ele que estabeleci contactos com o Jornal de Notícias, do Porto, e comecei a experiência jornalística, já que a Literatura, como disse Somerset Maugham, poderá ser uma vistosa bengala, mas não é lá grande muleta. Trabalhei sete anos na redacção do Jornal de Notícias e ao fim desse tempo despediram-me.

- Porquê?

- Porque a já extinta editora Prelo acabara de publicar Os Putos, título definitivo do Sardinhas e Lua em edição bastante aumentada. Entre os novos contos havia dois, "O Campo de Judite" e "O Gancho", que desagradaram aos omnipotentes senhores do Jornal de Notícia. Despediram-me sem ao menos me ouvirem. Foi em Maio de 1973, estava-se a menos de um ano da Revolução dos Cravos...

- Mas Os Putos tiveram êxito.

- Um êxito que contribuiu para me abrir portas em Lisboa, as do velho jornal O Século.

- Também trabalhou nele muito tempo?

- Até o jornal fechar. Aí não foi despedimento (risos).

- Regressou então ao Porto?

- Não. Permaneci em Lisboa. Os Putos estavam a ter uma aceitação tremenda, as reedições sucediam-se e os editores, por esse tempo, portavam-se de forma razoavelmente satisfatória. Cheguei a acalentar o sonho de viver dos meus livros, de viver da Literatura. Ilusão, pura ilusão.

- Reatou a actividade jornalística?

- Sim, trabalhei mais dezassete anos no Comércio do Porto. Antes disso, porém, fiz umas viagens, uma delas a Macau, que me proporcionou material para outro volume de contos, as Histórias de Macau.

- No seu romance A Colina dos Espantalhos Sonhadores diz, às tantas: «O neo-realismo faz-me vómitos». E mais à frente: «Viva o realismo fantástico em vias de nascer entre nós!»

- Bem, eu punha os olhos num texto neo-realista, duro, cruel e mais nada, acabava invariavelmente por desviá-los. Se se der ao trabalho de pesquisar, verá que até nos meus contos mais graníticos há suavidades transfiguradoras, como as neblinas no cume das montanhas.

- Foi a magia da sua tia Emília que o salvou de cair no neo-realismo...

- Contribuiu para isso, não tenho dúvida.

- Nunca publicou poesia?

- Sou um prosador.

- Altino, gostava que falasse um pouco sobre a escola.

- Talvez fosse melhor você ler o último conto de Os Putos, na mais recente edição da "Casa da Moeda". Descreve a escola tal como a conheci em miúdo, aquela velha sala a cair de podre, com os seus cheiros, as suas vozes, as paredes forradas a mapas e por detrás da secretária da professora os retratos do marechal Carmona e de Oliveira Salazar, com Jesus cruxificado de permeio...

- Para além da sua tia Emília, há outras professoras na sua obra, como aquela Domicilia do romance Viagem a Ver o que Dá...

- Tomei como modelo uma professora mazinha que tive... (risos)

- A escola oficial que frequentou era na cidade de Braga?

- Comecei numa escola bracarense, que já não existe, da rua Santa Margarida, e acabei na escola da Sé. Nasci em Braga e vivi lá até aos 27 anos.

- Gostou do tempo em que frequentou a escola? É que nem tudo foi muito bonito, pela maneira como descreve certas situações...

- Se se refere aos castigos, vi dar muita pancada nas escolas, e eu próprio terei apanhado a minha reguadazita, mas a memória esfuma-se e não estou lá muito certo.

- Mas não acha que a escola antiga nos chega com uma imagem cheia de humanidade e de afecto, porque assim a descrevem os escritores-professores?

- A minha escola, especialmente na aldeia, a dos tempos pré-primários, a de minha tia Emília, era algo de mágico. Ir para lá era uma expedição mágica.

- Tem sido convidado, enquanto escritor, a falar nas escolas?

- Poucas vezes, e ainda bem. Gosto tanto de falar em público como de dar entrevistas (risos).


Entrevista conduzida por Luís Souta
Autor do Artigo
Altino Tojal
Escritor
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
lsouta@ese.ips.pt

Jornal "a Página"
Nº 106
Ano 10 | Outubro 2001
Pag. 14

1 comentário:

Anónimo disse...

O Altino é um dos maiores vultos da cultura portuguesa e infelizmente anda desaparecido.
Um homem um artista de grande valor, e que com orgulho acho Amigo.
Parabéns pela entrevista.
Um abraço Amigo
Henrique Tigo