11 de setembro de 2004

O EPC que me faltava na colecção de Verão

105 Anos
Por EDUARDO PRADO COELHO
Segunda-feira, 06 de Setembro de 2004

incrível: Emídio Guerreiro faz hoje 105 anos. António Melo entrevistou-o para a última "Pública". E esta entrevista emociona-nos pelo percurso de uma vida e ao mesmo tempo constitui a homenagem merecida a um grande combatente pela liberdade (a sua biografia é exemplar). E é também um espantoso documento sobre a vida e a velhice. O que impressiona nas palavras de Emídio Guerreiro é a extrema lucidez do seu discurso, a capacidade de desenvolver ainda raciocínios complexos e originais. Por exemplo, quando na sequência de uma interpelação do entrevistador, Emídio Guerreiro faz a distinção extremamente pertinente entre a racionalidade inata e a construção do racionalismo: "O racionalismo é uma grande descoberta da emancipação humana, permite-nos saber que somos homens. Todas as teorias filosóficas admitem o ser, admitem o estar, admitem o dogma. Mas só a partir de Descartes [1596-1650] é que o racionalismo passou a ser um instrumento para construir a própria razão humana. Pela dúvida metódica, passa a passo, procede-se para o conhecimento de uma verdade que permite alcançar o conhecimento de outra verdade. Chega-se a uma verdade formulada sem imposição de uma verdade revelada."

Emídio Guerreiro traz consigo todos os grandes temas do humanismo progressista, mesmo naquilo que tem hoje para nós uma dimensão algo datada. Mas os grandes nomes estão lá: de Descartes e da instituição do espírito crítico até ao mito do Prometeu agrilhoado como narrativa imorredora da liberdade, Emídio Guerreiro, homem de formação científica, vai buscar todos os temas fundamentais e alegorias nucleares para traçar o grande paradigma do progresso: afirmação do pensamento não tutelado e da tolerância, combate da luz contra as trevas, dignidade vertical do ser humano.

Mas é aqui que surge a velhice e surge uma imagem admirável: Sísifo já não é Sísifo, é alguém que desce ao subir. Toda a entrevista é um belíssimo combate entre um António Melo que se pretende optimista e um Emídio Guerreiro que acha que a velhice é pior do que a morte, porque é o declínio de todos as grandes razões de ser do homem livre. A alegoria ganha aqui uma outra dimensão: "Referiu Sísifo, mas já não estou a subir a montanha; é o contrário. É uma projecção que sai da vida. Imagine que o meu amigo está a descer a montanha e tem aos seus pés um espelho enorme. Há uma visão da vida que sobe, mas o caminhante desde. O aspecto real desta visão é o da vida não autónoma. É uma amarração à vida.".

Admirável confronto. De um lado a vida e a morte como formas de vida. Do outro, uma realidade terceira, lateral, insuportável, inaceitável. Emídio Guerreiro afirma: "eu desejo que os meus amigos vivam muito, só que não envelheçam". E quando António Melo pergunta: "Só vê a velhice como decrepitude? Não pode ser uma reflexão da experiência?", Emídio Guerreiro responde com um golpe impiedoso da razão: "Não é. É um naufrágio". Mas nós, que vemos com espanto este homem que atravessa os séculos, só podemos dizer a admiração que ele nos merece.

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