9 de setembro de 2004

O GRITO

Domingo, 05 de Setembro de 2004

José Eduardo Agualusa

O que significa ter? As crianças começam muito cedo a dizer - "Dá!", e, uns meses mais tarde, "isso é meu". Hoje em dia há até muitas que aprendem primeiro a dizer "Dá!", e só depois Mamã e Papá. A seguir formam as primeiras frases: "Dá Mamã!". "Dá Papá!".

Vi recentemente uma reportagem sobre um americano que enriqueceu a vender terrenos na Lua. Largos milhares de pessoas aceitaram pagar uns tantos dólares, não muitos, é certo, para a seguir poderem dizer, apontando a lua, nas noites de lua cheia: "Tenho ali dois hectares". Ou, um outro, igualmente romântico mas mais afortunado: "O Mar da Tranquilidade, sabes?, onde poisou a Apolo 11 em 1969 - pois olha, é todo meu". Uma vasta planície de crateras e poeira a trezentos e oitenta e cinco mil quilómetros de distância.

Suspeita-se (leio nos jornais) que por detrás do recente roubo d' "O Grito", de Edvard Munch, esteja um próspero coleccionador norueguês, actualmente radicado no Sul de Espanha, que fez fortuna traficando álcool e cocaína. Parece-me isto ainda mais estranho - alguém gastar uma fortuna, arriscando ao mesmo tempo a liberdade, apenas para poder contemplar sozinho, e em segredo, uma tela famosa - do que comprar um terreno na Lua. Quem compra um terreno na lua crê que é seu algo que continua a ser de todos, e, na verdade, não pertence a ninguém. Quem quer que aceite comprar a versão roubada d' "O Grito" (conhecem-se quatro) crê que é seu algo que, todavia, continua a ser de todos, pois toda a gente conhece o quadro a partir dos milhões de cópias impressas que circulam pelo mundo, e nem sequer o pode exibir.

Consigo compreender um pouco melhor os coleccionadores cujo prazer consiste não tanto em possuir um qualquer objecto ou obra de arte, mas, sobretudo, em partilhá-lo com outros. Visitei, em São Paulo, a biblioteca de José Mindlin, um homem encantador, talvez o bibliófilo mais experiente e bem sucedido do mundo lusófono, e não pude deixar de experimentar um certo alvoroço quando ele me colocou entre as mãos um exemplar da primeira edição d' "Os Lusíadas", de 1572 (ele tem dois). Não o trocaria, porém, pela edição mais barata do "Livro do Desassossego". Acho muito bem que se valorize, até que se venere, aquele velho exemplar d' "Os Lusíadas". Trata-se, sem dúvida, de um objecto antigo e respeitável. Ainda assim prefiro lê-lo a venerá-lo. Surpreenderam-me mais os manuscritos que José Mindlin guarda na sua biblioteca. Esses, sim, são únicos, e, além do mais, a caligrafia preciosa e, em alguns casos, também as ilustrações, fazem deles legítimas obras de arte. Neles não é a palavra que brilha (a palavra pode brilhar, com idêntico esplendor, sobre o papel vulgar ou sobre o ouro); é o desenho e as cores.

Quanto a mim, se algum dia, graças a um qualquer golpe da sorte, viesse a dispor de meios suficientes para tal, preferia contratar um bom falsificador, para que me copiasse as minhas telas preferidas. Não vejo muita diferença, em termos de conteúdo, entre uma edição actual, barata, d' "Os Lusíadas", e aquelas que José Mindlin me mostrou; da mesma forma também não há diferença sensível entre uma boa cópia d' "O Grito", e os gritos originais.

Em 1911 um carpinteiro do Louvre, o italiano Vincenzo Peruggia, conseguiu roubar a Mona Lisa a mando de um presumível milionário. Este, todavia, nunca apareceu para a reclamar. A única coisa que pretendia era que o alarme fosse dado de forma a poder vender uma série de cópias, quase perfeitas, da famosa tela a coleccionadores (realmente) milionários. Peruggia, coitado, devolveu a obra, com a condição desta ser repatriada para Itália - um gesto nobre, mas inútil. Foi preso e a Mona Lisa continuou no Louvre.

A verdade é que eu preferia roubar, por exemplo, a Marisa Monte a roubar a Mona Lisa. Roubaria a Marisa Monte, a Lura, ou a Adriana Calcanhoto, ou as três, dependendo do custo da operação, para que cantassem só para mim, todos os dias, as vezes que eu quisesse, as minhas canções preferidas. Não tendo dinheiro para tal, compro os discos. Mas, é claro, um disco não se compara com um concerto ao vivo. Nem sempre as cópias, mesmo excelentes, conseguem parecer-se com o original.

Sem comentários: