Domingo, 05 de Setembro de 2004
António Melo Nelson Garrido
Emídio Guereiro perfaz 105 anos de vida no dia 6 de Setembro. Quando lhe pedem um balanço desta longa existência, diz que ela cabe por inteiro no poema de Paul Éluard, "Liberté", de que evoca os últimos versos: "Pelo poder de uma palavra // Reinício a vida // Nasci para te conhecer // Para te nomear - Liberdade". Nasceu em Guimarães, onde amanhã se vai comemorar o aniversário, numa celebração de projecção nacional, que a municipalidade vimaranense lhe dedica.
Filho de um oficial do Exército, António Guerreiro, que fez parte do corpo expedicionário na Grande Guerra de 1914-18, enviado para defender os territórios ultramarinos da eminente invasão germânica, dele herdou o fervor republicano e o impulso para a intervenção cívica.
Não fosse essa quase ânsia de modificar a sociedade no molde maçónico da liberdade, igualdade e fraternidade, o jovem Emídio teria sido um insigne matemático, com uma carreira académica a fazer-se sob a orientação de mestre Gomes Teixeira, que o escolheu em 1931 para seu assistente extraordinário.
Porém, em Janeiro de 1932 estava já no Aljube de Lisboa, preso por provocar um motim quando o general Carmona, líder da ditadura militar e Presidente da República do Estado Novo, visitou o Porto, em Dezembro de 1931. Do Aljube se evadiu no dia 4 de Abril de 1932, num exílio que só terminaria 42 anos mais tarde, com a Revolução dos Cravos.
Foi partidário dos republicanos na Guerra Civil de Espanha e resistente à ocupação nazi na França de Vichy. Quando regressou a Portugal, em 1974, liderou por curtos meses o PPD e foi deputado à Assembleia Constituinte. Depois aproximou-se do Partido Socialista e chegou a participar em algumas das suas campanhas eleitorais, mas sempre na qualidade de independente.
Nesta entrevista revela uma visão amarga sobre o destino da velhice, que vê como uma quase tragédia da condição humana. Mas o espírito de rebeldia, o fogo criativo do Prometeu agrilhoado, continua a arder-lhe nas entranhas.
P. - Entre a infância e a velhice há idade adulta. São as idades do homem, com que Édipo neutralizou a Esfinge?
R. - A Esfinge que devorava tudo, se não respondessem a uma determinada pergunta. E a reposta de Édipo foi: é o Homem. Assim se desfez a Esfinge e Édipo se fez rei. Mas estava escrito que ele mataria o pai, sem saber quem ele era, e casaria com a mãe. Foi rei incestuoso. Esta lenda é a primeira afirmação da potência humana, porque morrer, sem dar resposta à terrível Esfinge, significa que não se tinha a noção completa do que era a vida. Há um filósofo grego, Epicuro, que tem uma concepção maravilhosa sobre o que é a morte: "Enquanto tu és, a morte não existe, enquanto a morte não está, tu estás". Depois, é o nada absoluto.
O que não quer dizer que não receba a morte quase com alegria. Aquilo de que tenho horror não é da morte, é da velhice. A velhice é que não suporto.
P. - Porquê?
R. - Porque a velhice é uma espécie de condescendência da vida. Chega-se a um termo, que é aquele em que eu estou, em que já não há nada a dar. Sente-se uma espécie de vácuo. Mas é ridículo tentar filosofar aos 105 anos de idade. A meu ver é um limite máximo da vida.
Pessoalmente sinto-me cansado, muito, muito mesmo. O que me resta são fragmentos das noções que tive quando tinha uma verdadeira vida. É um naufrágio.
P. - Não é essa uma atitude dos cínicos, que desdiziam o que diziam. Fez uma proclamação sobre as limitações da velhice. Mas a criança está ainda mais limitada, pois ignora por completo o que é a experiência da vida.
R. - Certo. A vida só o é quando se adquire a consciência. A infância é um prefácio.
O que vou dizer poderá não agradar ao Papa, mas é a minha opinião. A vida humana não começa com o feto, começa com a consciência. A partir daí é que adquirimos uma existência própria. E depois vem a morte.
P. - Aos 105 anos o sopé da montanha é demasiado grande para o homem que está a subi-la?
R. - Quantas vezes não disse já que penso que estou a subir a montanha por ela abaixo? É uma subida negativa. Vejo-me projectado numa imagem ilusória, que me mostra a subir, quando na realidade estou a descer.
A velhice é um naufrágio em que o náufrago se agarra a tudo para continuar a supor que vive.
P. - O filósofo Jacques Derrida, em entrevista recente [Le Monde 19/8/04], falava da velhice como uma "sobre-vivência". Mas acrescentava que os "sobreviventes" são os que estão com a vida, não os que se lhe opõem.
R. - Não suporto essa velhice que se agarra à vida. A parte de uma sobre-vida não é uma super-vida. Eu entendo que a partir do momento em que o homem não é senhor da sua autonomia já não vive.
P. - Não é o sujeito soberano de si mesmo que define a sua capacidade autónoma? Não é a consciência de si que impõe os limites à autonomia? Não é esse o significado de Sísifo?
R. - Quando se pretende ultrapassar o impossível, a autonomia do homem ... Estou cansado... vamos fazer uma pausa...
Referiu Sísifo, mas já não estou a subir a montanha; é o contrário. É uma projecção que sai da vida. Imagine que o meu amigo está a descer a montanha e tem aos seus pés um espelho enorme. Há uma visão da vida que sobe, mas o caminhante desce. O aspecto real desta visão é o da vida não autónoma. É uma amarração à vida.
P. - Mas esse é o mito do Prometeu agrilhoado, que sofre a punição de quem trouxe o fogo criativo.
R. - Ah, a vida do Prometeu é a maravilha da mitologia. Quando penso em Prometeu e me recordo que roubou ao Olimpo o fogo sagrado, para o dar ao homem, vejo nele o primeiro acto da liberdade humana. Um desafio que pagou caro, muito caro, com as vísceras a serem devoradas pelas aves de rapina. É o primeiro passo do homem para a liberdade. O primeiro acto de rebeldia, que é também a primeira afirmação de autonomia da vida humana, que não se limita a ser só vida, é também a razão da vida.
Aí intervém um grande filósofo que acabou definitivamente com a escolástica medieval, Descartes, que nos deixou um formulário para podermos deduzir a verdade. A dúvida metódica é o grande trunfo do ser racional. O racionalismo não é senão a dúvida que o homem se põe e levou a ciência a desvendar e a interpretar os segredos da natureza.
Mas eu desejo que meus amigos vivam muito, só que não envelheçam.
P. - Só vê a velhice como decrepitude? Não pode ser uma reflexão da experiência?
R. - Não é. É um naufrágio.
P. - Tem que o ser necessariamente? Almeida Garrett não escreveu as "Folhas Caídas", que é um poema lírico à vida outonal?
R. - Não me estou a referir ao que vivi durante uma longa vida. Estou a falar do estado presente da velhice. Quer dizer, de um momento a partir do qual a vida já não tem a intensidade que lhe permite ser independente. Compreende?
P. - Não muito bem. Sujeitos soberanos podemos ser, mas em absoluto nunca o somos, precisamos de ser solidários.
R. - Bom, se discutimos assim a autonomia, numa perspectiva de sociedade, há sempre um limite. Não vou ao ponto de admitir o homem como o deus de si próprio, como queriam os anarquistas do tempo do Kroptkine. O que eu digo é que a individualidade é uma coisa muito rica. Combati a vida inteira pela dignidade do homem, e nessa dignidade estão duas coisas fundamentais: a dignidade e a liberdade.
P. - E a solidariedade e a tolerância pelo outro?
R. - Isso são atributos secundários. A individualidade é a marca da humanidade, pois estou convencido que não há dois homens iguais. Há sempre qualquer coisa que os faz singulares. Essa é uma especificidade do ser racional, mesmo que possa haver outras espécies animais com mais ou menos aspectos de atitude racional. Mas a razão humana é particular, porque é ela que faz com que se seja uma individualidade única.
P. - A racionalidade é inata, mas o racionalismo é uma construção?
R. - O racionalismo é uma grande descoberta da emancipação humana, permite-nos saber que somos homens. Todas as teorias filosóficas admitem o ser, admitem o estar, admitem o dogma. Mas só a partir de Descartes [1596-1650] é que o racionalismo passou a ser um instrumento para construir a própria razão humana. Pela dúvida metódica, passo a passo, procede-se para o conhecimento de uma verdade que permite alcançar o conhecimento de outra verdade. Chega-se à verdade formulada, sem imposição de uma verdade revelada.
Não foi pouca coragem a dele para o dizer, pois nessa altura realizava-se o julgamento, terrível, de Galileu Galilei [1564-1642].
P. - Descartes receou ser perseguido?
R. - Ele sabia que os motivos que levaram a Inquisição a perseguir Galileu, ao negar a verdade sagrada que dizia ser o Sol que andava à volta da Terra, também o podiam atingir. Ele pensou muitas e muitas vezes sobre o que se estava a passar com o físico de Pisa e levou a sua prudência a demonstrar, de uma maneira claramente anti-racional, a existência da alma! Ele viu as barbas do vizinho a arder, julgado por cardeais do Santo Ofício... Galileu foi obrigado a desmentir-se [em 1633], a dizer que o Sol andava à volta da Terra, quando ele verificara que não era assim. Ficou sob vigilância censória, para "não cair nos mesmos erros". Até se diz, não sei se é verdade, que ele acatou a sentença, de que a Terra era o centro do Universo, mas lá para dentro ia murmurando, "et per si muove".
P. - Essa evocação de Galileu traz de novo a compreensão da velhice à conversa. A uma criança ser-lhe-ia impossível compreender o que dizia Galileu. Se a idade adulta é a da acção não é a meditação a da velhice?
R. - A velhice não permite nada! É, de facto, a ante-câmara da morte.
P. - Ou é sono, como pretendia Vitor Hugo?
R. - Sejamos sérios, o que pode fazer um homem que chega aos 105 anos?
P. - Não está antes a criticar uma certa publicidade que pratica a discriminação dos idosos, em nome da estética. Não é de todos os tempos o reconhecimento da sageza dos anciães?
R. - Cuidado, há duas etapas, a da velhice que vive e aquela que vegeta. O que se pode extrair de um homem com 105 anos? Recordações de um passado longínquo, algumas muito vagas, com umas poucas ideias.
P. - Não está a contradizer a visão ampla do horizonte que se tem do alto da montanha?
R. - Quando eu disse que ter 105 anos é subir pela montanha abaixo, queria dizer que isso não era mais do que a projecção de uma vida que já passou. A vida activa que faz o homem já se esgotou.
P. - Prometeu traz o fogo consigo, Sísifo transporta a carga do tempo. Há ainda o Fausto da eterna juventude, e o Pigamalião, marioneta social, que acaba por suplantar o original. Não é essa imagem fabricada, que associa juventude a corpo esbelto, que o apoquenta?
R. - É pior do que isso. É mesmo o confronto com a realidade. Quando olho para o espelho e vejo o estado físico em que me encontro, pergunto-me se sou eu mesmo, o que lutou uma vida inteira. Eu estou não a viver, mas a vegetar.
P. - Bom, enquanto houver consciência e pensamento, é difícil de aceitar essa visão depressiva. Não é penoso ver a sociedade que marginaliza o ancião, sonhar em clones, criar uma sociedade de Pigmaliões adestrados?
R. - Aí está uma palavra que é preciso ter em conta - sociedade. Esse é também um dos problemas da vida. O homem nasce bom, dizia Rousseau [1712-1778], o que o torna mau é a imersão na sociedade; daí que para preservarmos a nossa identidade individual, a sociedade tenha que passar um "contrato social" entre os seus membros.
Mas uma sociedade que precisa de um "contrato social" para se justificar é um absurdo. Nesse sentido, está contra a razão. Desde tempos imemoriais que o homem vive em sociedade, pelo menos desde o tempo em que Prometeu lhe comunicou o segredo do fogo. Com a agricultura fixou-se e deixou o estado selvagem. A partir daí teve que sujeitar-se a hábitos, costumes, a leis que ele próprio fez. Data daí a alienação do homem. Ele criou determinadas noções, às quais se sujeitou, e que depois acabaram por aliená-lo, moldá-lo numa outra natureza...
P. - Virou Pigmalião...
R. - ...por exemplo, a noção de deus é aqui em Portugal maioritariamente católica. Mas a história da construção deste ser transcendental, que na origem parece ser uma atitude irracional, é própria do homem, da sua razão humana. Foi uma maneira de interpretar a natureza. Os fenómenos que a ciência não sabia explicar foram atribuídos a uma força superior, o que, independentemente da validade da atribuição, é uma explicação. Daí que para se explicar a si mesmo, tenha criado um deus à sua imagem e semelhança.
P. - E assim se foi alienando. O que nos leva à oposição entre Fausto e Pigmalião. Gostava de ser Fausto?
R. - Pois é. Mas isso é impossível, por isso é que digo que a única razoabilidade da vida é esta - encaminhar-se para o fim. A vida não termina com a morte física, esvai-se antes disso. Falou em Fausto, pois bem, o grande drama da alienação humana é esse, depois de ter inventado toda uma série de regras, sujeita-se aquilo que criou.
P. - A morte e a solidão são sinónimos? A ausência dos entes queridos traz a solidão?
R. - Não é a solidão, é a confusão. Quando estou com amigos passo relativamente bem, mas sozinho a minha cabeça parece um vulcão que se esvazia em cada explosão.
Pessoalmente este foi um ano muito mau para mim. Morreu a minha mulher, tive dissabores pessoais, morreu um grande amigo meu, José Augusto Seabra, que teve um funeral incrível, com missa de corpo presente. Ele foi um grande lutador pela liberdade, contra um regime infame que durou 47 anos. A seguir à revolução democrática, numa lista que eu organizei, ele foi um dos deputados à Constituinte, aquele que lá fez talvez o mais belo discurso. Foi ministro e embaixador. Teve uma carreira académica notável... Teve um funeral que foi uma atitude de esquecimento. É uma injustiça.
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