26 de setembro de 2004

Outrora agoras

Autobiografia de Mário de Carvalho

JL 15 Set. 2004
Não contei a ninguém que o meu primeiro livro estava para sair. Salvo o grupo dos Quatro Elementos Editores, a Lena, muito poucos sabiam que eu ia publicar. Amigos mais chegados nem suspeitavam. Queria que o livro aparecesse fora dos meus circuitos habituais, em território desconhecido, para ter a certeza de que não interferiam favorecimentos. O Ernesto José Rodrigues dera o manuscrito a ler ao João de Melo, na altura consultor da Vega. Eu desconhecia tanto o escritor, como a editora. Fui contactado, resultou. Coisa rara e preciosa, naqueles apertados tempos.
Em certa tarde de Julho de 1981, trouxeram-me da tipografia os primeiros exemplares de Contos da Sétima Esfera . Entretanto, a obra dactilografada já havia naufragado em concurso de inéditos da Associação Portuguesa de Escritores. Falira também uma pequena editora que tinha acolhido o manuscrito. Enfim, sobrevivemos à primeira linha de torpedos.
O cheiro vivaz do perfume, a rescender a coisa nova e benigna nunca mais foi tão penetrante (romanescamente, eu poderia mesmo dizer «inebriante») como nesse dia. Seguiu-se o sentimento de estranheza, um tanto desconfortável, ao confirmar, nas livrarias, que aquela indiscreta fotografia na contracapa era mesmo a minha.
Começava a metamorfose em escritor. Chegava o mundo dos «lançamentos» dos «confrades» (e «consorores») das recensões, dos jornalistas, dos artigos, das viagens, das universidades, dos colóquios, das traduções, das escolas, associações e institutos, das solicitações, entrevistas, fotógrafos, encomendas, crónicas, exibições e habilidades várias, sempre longe e fora de mão. Pelo meio, ingenuidades, espantos, desacertos e distracções. Júbilos. Mal-entendidos, equívocos. Bloqueios e procrastinações. Amizades giras. Furores passageiros. Sofridas vigarices fininhas. Silêncios distraídos. Omissões velhacas. Disparates. Fui-me deixando levar, entre a curiosidade e o susto, o gáudio e a depressão. Tenho perdido algum sono, acrescentado neuras e enfados, aturado traições e rasquices. Exaltações, poucas. Persisto na fraqueza de dar confiança a quem não devo. Nos primórdios levava tudo muito a sério, zangava-me, bramia, interpelava e não ganhava nada com isso. Agora, vamos andando...
Não fora aquele passo de há quase vinte e cinco anos, o apoio de Fernando Guerreiro, da Lena e de outros próximos, talvez a Sétima Esfera jazesse, estéril, entre papéis velhos, na gaveta dos tentames esquecidos. Talvez eu vencesse o fastio pela advocacia e ainda esbravejasse hoje pelos tribunais a invocar a «excepção do inadimplemento contratual».
***
Sou iniludivelmente um homem do Sul. Em rigor, vim nascer a Lisboa, mas essa circunstância conta menos que o feixe de memórias e afeições que me prende ao Alentejo. Os grandes espaços, a paisagem, a maneira de estar, de falar, de cantar, ficaram-me gravados desde a infância .
A minha avó tinha as mãos enrugadas e quentes, era bom adormecer ao colo dela, junto ao lume, naquela enorme lareira, onde a família se dispunha em cadeirinhas de palha, todos conversando, em tons de negro e vermelho. Os gatos, espojados, tisnavam o pêlo de tanto arrimo às brasas. Saltavam faúlhas. De vez em quando, estalava uma bolota a secar ao fumo. Eu ia dormitando, naquela modorra amiga, entre vagos ressoos de voz que ora pareciam altear-se, ora sumir-se.
Lá fora, pesavam tempos de humilhação e de vergonha. Nas praças de jorna avaliavam-se músculos e dentes, como a animais. Eram proibidos ajuntamentos. Era proibido cantar. Trabalhava-se de Sol a Sol. Passava-se muita fome. Havia herdades enormes em que dispunha uma gentalha torpe e salafrária, amigada com a pide e com o fascismo. A maior parte das pessoas não tinham nada de seu, a não ser a doença e a miséria. A Guarda Republicana desses tempos «chamava ao posto» e espancava a pobre gente, mesmo para dirimir casos cíveis. Celerada época e não há razoar revisionista que a desculpe ou branqueie.
Vivemos por pouco tempo em Setúbal. Depois, Lisboa. Íamos a Alvalade pelas Festas e pelo Verão. Nos primeiros tempos, não havia ponte. Calculava-se a olho o caudal do rio (ali chamam ao Sado «Ribeira») e vadeava-se, arriscando o motor. Mais duma vez vieram as parelhas tirar-nos da água. Na Vila, chusmas de moços corriam atrás do carro. Um automóvel era uma festa. Depois chegávamos ao Monte da Vinha, extensões a perder de vista, pelo menos para a minha estatura, correrias, traquinices e a grande complacência da família. Tudo tinha outras cores, outros sabores, outros cheiros, outro encanto. E eu era curioso... Fazia as perguntas certas.

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