6 de outubro de 2004

Com uma dedicatória especial: para a Manel, uma das melhores pessoas do mundo!

SEBASTIÃO DA GAMA
Entre quem é!
(texto acerca do calor humano e da hospitalidade alentejana, publicado no Jornal “Brados do Alentejo” de 11 de Março de 1951)

Isto será defeito meu, mas assim hei-de morrer: só estou bem onde estou. Não que não viaje: viajo. Quan­tas vezes fui a Paris desde que arribei a Estremoz! E até, vejam lá os senhores!, passei três dias em Margão, que é na Índia Portuguesa! Com Alberto Osório de Castro. Que saudades tive de Portugal, como foi meu este verso: “Meu país português, azulado, na bruma!”
Mas são viagens breves, ausências curtas. Logo regresso às casas brancas de Estremoz e às águas do Gadanha. (Destas nem falo o que tenho a falar. Diriam: “O sujeito é doido. Chamar Oceano àquele palmo cúbico de água encarcerada!; ter descoberto as Molucas no coração do Alentejo!”)
Aqui, com a Torre de Menagem a velar pelo meu sossego, sinto-me em casa. Forasteiro? Qual forasteiro! Não sei ser forasteiro nem hóspede. O tal meu defeito...
É provável que os outros não pensem de mim o mesmo que eu. E digam: “Ora o intruso! Ora o impor­tuno! Ora o forasteiro!” Mas eu não dou por isso, feliz­mente. – É que me doía, sentir-me em casa alheia. Doía - não é bem. Seria antes um não me sentir à vontade, um acanhar-me, um gaguejar até com as mãos, de provin­ciano recém-expedido.
Mas o alentejano, pelo menos o alentejano de Estre­moz, ou eu erro muito ou é precisamente o português menos inclinado a recusar-me a sua simpatia. “Entre quem é e chegue-se para o lume” - é o que diz a quem lhe bate à porta (ainda ontem o li em Raul Brandão) a voz grossa do trabalhador alentejano. Não se deteve a perguntar quem era. Entre. Entre quem quer que seja que o lume não é menos de quem chega que de quem está. É lume do Alentejo. Achas de azinho? Hão-de lá estar, já em brasa viva e aliciante - tão belo espectáculo só o das ondas. Mas o lume do Alentejo é feito, princi­palmente, de calor humano, de ternura que se dá sem efusão - simples, discreta, profunda. Entre quem é.
A solidão ai dão ai dão do Alentejo não é de almas. A palavra ecoa, angustiadamente e longamente, é na pla­nície, pela planície fora... Que é das fontes? Mas entre a gente não é assim.. Ainda não consegui, no Alentejo, estar integralmente sozinho; ainda não consegui ter frio. Em vez de solidão, senti à minha volta aconchego, ternura. No ar. Nas pessoas. Até dos que nada dizem e passariam despercebidos a um coração menos atento, sinto que vem até mim, para comover-me, uma onda suave, ou humilde, não sei bem, de compreensão, acolhimento, carinho.
Falam os livros da hospitalidade alentejana. Mas não foi nos livros que eu me habilitei a não estranhar o clima que me recebeu nesta cidade amena e amável. Lá onde a solidão é possível, lá onde a solidão tantas vezes dói, à Lisboa que amo de outro amor - vão dar, e para sempre quedam nostálgicos da paisagem erma que os fez, poetas dos quatro cantos do Alentejo. Exilados, e tristes alguns irremediavelmente, junta-os a mesma saudade e a mesma sede de aconchego. É o Raul de Carvalho, é o Luís Amaro (“velho e fraterno Amigo”, como ainda ontem se dizia ele, a fechar uma longa carta). Junto deles – “Entre quem é e chegue-se para o lume” - é que eu aprendi o Alentejo. Na voz deles, que logo dá a saber, iniludivel­mente, com que amizade e com que franqueza se pode contar; e na sua poesia, onde o Alentejo passa mesmo quando parece esquecido.
“Entre quem é.” Era eu. Bem podia responder: “Sou eu - sou o amigo do Luis e do Raul.” Mas ao alentejano, que falta lhe faz a recomendação?... Entrei. Cheguei-me para o lume. Quentes de entendimento, nem precisaram as nossas mãos de apertar-se. Ali, à volta do lume e no mais quente do lume, era o Alentejo.

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