5 de outubro de 2004

O Dia em Que Agualusa foi Mia Couto

O Dia em Que Fui Mia Couto
Por JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Segunda-feira, 10 de Junho de 2002
O homem avançou na minha direcção, estava eu sentado, sozinho, em meio ao ruidoso fulgor da primavera, na Feira do Livro de Lisboa. Gente ociosa girava por ali, de barraca em barraca, procurando títulos conhecidos. Era um sujeito assustadiço, o tal homem, todo de preto, de olhar cansado, muito cheio de gestos e ademanes. Parou à minha frente e estendeu-me um livro:
"Pode assinar? Ponha assim: para o meu querido amigo Rufino, lembrando o tempo das lutas, com todo o carinho... Não! Não! Sei lá, ponha antes uma dedicatória à sua maneira... Mas para o Rufino, para o Rufino..."
Era um livro de Mia Couto. A primeira edição de "Vozes Anoitecidas", editada pela Associação dos Escritores Moçambicanos. Senti-me lisonjeado com o equívoco. Agarrei no volume e abri-o na segunda página. Ao menos por alguns segundos poderia ser Mia Couto. Já de caneta em punho, porém, dei-me conta de que me faltava o génio do escritor moçambicano até para uma simples dedicatória. Encarei o sujeito e disse-lhe a verdade:
"Lamento muito. Não fui eu que escrevi este livro."
Lamentava mesmo. Ele encolheu os ombros, ou melhor, encolheu-se nos ombros, encolheu-se todo, como um morcego triste, e depois suspirou - já vencido:
"Não faz mal", disse. "Assine como se fosse. Afinal de contas eu também não sou o Rufino."
Lembrei-me de uma anedota muito conhecida no meio literário carioca. Uma noite tocou o telefone em casa de Carlos Heitor Cony. Era um amigo do famoso romancista, entusiasmado, perdido de riso. Estava numa discoteca, dançando, quando uma bela mulher se aproximou dele:
"Você é o Cony?"
Que sim, que fora sempre, desde criança. "E aí?", quis saber o romancista. O outro exultou: "Bendita confusão. Estou levando a mulher para minha casa. Depois te conto". Na manhã seguinte o telefone voltou a tocar. Era o amigo. "E aí, cara? Comeu?!". O outro foi devagar, demorando-se nos pormenores, fazendo render o peixe. Haviam conversado muito. A mulher lera todos os livros do romancista. Tinha opiniões. Tinha ideias. Ouviram Caetano, dançaram um pouco, e depois ele mostrara-lhe o quarto. Beijara-a. Despira-a: um avião! Uma deusa! Um deslumbramento! Cony ouviu tudo, ansioso:
"E aí?!"
O amigo suspirou:
"E aí, Cony, você brochou..."
Lamentei que o sujeito à minha frente, vestido de preto, olhar cansado, não fosse uma bela mulher. O que é que Mia Couto escreveria se estivesse ali? Uma vez, numa outra feira do livro, em Cabo Verde, pedi-lhe ajuda para um autógrafo porque me sentia sem inspiração. "É fácil", disse-me: "tenho uma fórmula que resulta sempre. É assim: a ti não dedico, dedico-me". Quase me ofendi. Anos antes dedicara-me com essas exactas palavras um exemplar de "Cada Homem é uma Raça". Jurei vingar-me.
Colecciono edições do "Luuanda", de Luandino Vieira, livro que nos inícios dos anos sessenta esteve no centro de um violento escândalo político, ao ser-lhe atribuído o Grande Prémio de Literatura da Associação Portuguesa de Escritores. O romancista angolano estava então detido na Prisão do Tarrafal, suspeito de ligação a uma rede bombista, de forma que o júri do prémio foi acusado de favorecer um terrorista. Possuo uma edição do "Luuanda" com a indicação de ter sido impressa em Belo Horizonte, no Brasil, mas que, na verdade, foi feita em Portugal, ao que parece por iniciativa de um agente da PIDE interessado em lucrar com o tumulto. O livro é enriquecido com uma elaborada dedicatória de Luandino Vieira a uma senhora. Um dia mostrei-o ao próprio escritor. Ele não reconheceu a assinatura - também ela é falsa! Este excesso de falsidade torna o livro, pelo menos aos meus olhos, ainda mais valioso.
Isto tudo me passou pela cabeça no breve instante em que fui Mia Couto. Voltei a abrir o velho exemplar de "Vozes Anoitecidas" na segunda página, alisei-a cuidadosamente, e escrevi:
"Para o Rufino. A si não dedico. Dedico-me. Mia Couto"
Devolvi o livro com um largo sorriso. É quase tão falso agora quanto o meu exemplar do "Luuanda". Acho que estou vingado.

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