5 de outubro de 2004

O Meu País, isto é: o nosso

É melhor agarrar-lhe de unha
António J. Branco



A saga aventureira – triste e desencantada – das listas de colocação de professores, em que no século vinte e um a informática perdeu em favor do papel e do lápis, traz-me à lembrança uma história já antiga mas com o seu quê de subtileza.
Conta-se na minha terra que há muitos anos atrás, um dos habitantes abastados da aldeia – a minha terra ainda é uma aldeia – tendo tido necessidade de se deslocar à sede do Conselho, por lá ficou durante o dia mais tempo que o previsto e, sentindo necessidade de tomar a sua refeição – um aldeão normal teria, simplesmente, almoçado, mas um aldeão abastado tomava a refeição – entrou numa das casas apropriadas para o efeito, que na altura se chamavam Casas de Pasto e serviam almoços, e que hoje se chamam Restaurantes e servem refeições, e sentando-se numa mesa com assentos livres, mandou vir. O almoço, é claro!

Mas, tal como agora, também naqueles dias nem sempre o espaço chegava para todos em simultâneo de modo a colocar um só cliente em mesa individual e havia que proceder a alguns arranjos. De modo que, vindo o senhor Mário perguntar ao Júlio – Mário era o dono do restaurante e Júlio o freguês da minha terra – se permitia que um outro cliente se sentasse na mesma mesa o Júlio disse que sim, “Faça favor”, terá dito o meu conterrâneo de outros tempos e que eu ainda tive o privilégio de conhecer.

Consta que os dois pediram bife para o almoço - bife era na altura um prato de luxo, digno de fazer distinção entre as pessoas – e, mesmo não sendo carne de vaca perturbada como algumas que por aí enlouqueceram por culpa de gentes e de pastos, não era a dita cuja tenra o suficiente que se lhe pudesse chamar vitela, de modo que só alcançava a designação de bife de vaca. E de vaca foi; vaca velha, enrijecida, musculada e com o sistema nervoso muito alterado. O Júlio, quando à primeira tentativa de corte, notou que o naco de carne se lhe pretendia escorregar do prato, de imediato lhe deitou a unha e, pensando, “Anda cá que és meu”, principiou a mastigação do alimento por via directa, dispensando sem qualquer pudor, a faca e o garfo que o senhor Mário, gentilmente, tinha alinhado na sua frente. O outro senhor, certamente oriundo de uma terra menos aldeia e mais vila ou até mesmo cidade, onde as pessoas são todas bem formadas, civilizadas e afins, mas tendo a mesma sorte em termos de carne, pois a tal vaca devia ser das grandes e corpulentas, atacou o pedaço de carne como mandam as regras que assim seja mas logo à primeira tentativa de serrada da faca, o naco de carne quase escorregava pelo bordo do prato, e o Júlio, atento à tarefa do vizinho disse, “Agarre-lhe de unha”.

Mas o outro, por vaidade ou por pudor, não seguiu o conselho do Júlio que, nas calmas, continuou a mastigar o seu bife entalado um quarto de pão de trigo, que segurava na mão direita. Com a esquerda picava as batatas fritas levando-as à boca alternadamente; ora mordida de bife ora picada de batatas. Não seguindo o conselho, fez nova tentativa de serrar o nervo do bife, nova escorregadela e o Júlio voltou a aconselhar, “Agarre-lhe de unha”. Mas o resultado foi o mesmo.

Quase no fim da refeição – do Júlio – ainda o outro só tinha serrado meio quarto da carne que tinha por missão consumir e já o Júlio limpava os beiços, quando o primeiro, irritado, forçou faca e garfo contra carne e prato e decidiu que daquela vez é que era. Teve azar, as coisas à força nunca costumam funcionar, nem os bifes, e desagrafando-se-lhe a carne do prato escorregadio, estampou-se-lhe sem desplante no peito cabeludo de homem de negócios e ele só teve tempo de dizer, “Ora merda”, ou então disse outra coisa que eu, por pudor, não transcrevo.

Já o Júlio se levantava sem pedir com licença nem nada quando o desastre de deu mas, solidário com o acontecimento acontecido como diz modernamente agora o nosso Primeiro, ainda teve tempo de comentar, “Eu bem lhe disse que era melhor agarrar-lhe de unha, oh amigo”.

3 comentários:

molin disse...

Este senhor foi meu professor de rádio. O tal que dizia que a maior invenção do jornalismo (quer seja de rádio, televisão, ou imprensa) foi a puta da caneta.
Ipsis verbis.

Ganda maluco!

Anónimo disse...

Olá,
É sempre bom, saber que alguém lê aquilo que escrevemos; mais ainda quando concordam connosco. Obrigado pela divulgação.

Cordialmente,

Obs: Não sou o António Jorge Branco, Jornalista; mas sim, o António J. Branco, "desilustre" desconhecido...

Anónimo disse...

Sempre será o Grande Jornalista Antonio Jorge Branco, culto, inteligente, nunca anonimo.