4 de outubro de 2004

A Velha Carlota

de José Luís Peixoto, na Capital

Ontem, a velha Carlota dos moinhos de vento saiu da mercearia com dois sacos de compras, chegou a casa e pensou em matar-se. Porque chora vossemecê, Ti Carlota? Sentou-se num banco que tem sempre encostado ao lume. No Verão, o lume está apagado e ontem o lume estava apagado. A velha Carlota dos moinhos de vento sentou-se no banco e nem guardou a embalagem de Planta no frigorífico, nem guardou os pacotes de bolacha maria, que comprou para os cachopos que a vêm visitar, no armário de rede. Sentou-se num banco que tem sempre encostado ao lume. Já não presto para nada. Os seus olhos eram grandes. As lágrimas desciam-lhe pelas pregas da pele do rosto. Os lábios da velha Carlota dos moinhos de vento não são beijados há cinquenta anos. Ninguém olha para eles. São finos e secos.
Já não presto pata nada. E levantou-se do banco. As suas mãos são muito magras: a pele solta, as veias, os ossos, as unhas cortadas com a tesoura da costura. As suas mãos começaram a desabotoar a bata negra. Depois de cada botão, um pouco mais da combinação branca de flanela. Porque chora vocessemecê, Ti Carlota? As suas mãos soltaram as alças da combinação. No meio da cozinha, despiu-se toda nua. Uma lágrima caiu-lhe sobre o peito, desceu-lhe pela barriga, pela perna e secou antes de lhe chegar ao joelho. Tirou os ganchos, desprendeu a poupa e os cabelos brancos estenderam-se-lhe pelas costas ligeiramente curvadas. A porta da velha Carlota dos moinhos de vento nunca está fechada ao trinco. Entrei. Ela olhou para mim, toda nua, a chorar. A casa era escura e fresca. Os dois sacos de compras estavam no chão, junto à roupa caída. Porque chora vocessemecê, Ti Carlota? Já não presto para nada. Não diga isso, Ti Carlota, a gente gostamos muito de si.

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