5 de outubro de 2004

O tempo, segundo Miguel Esteves Cardoso

O tempo, em Portugal, não é tempo - é clima. Ainda não me habituei a ver um boletim meteorológico sem sorrir quando leio a palavra "tempo". E o "tempo" era uma rubrica que eu seguia atentamente; tendo sido assim que conheci e me apaixonei pela minha mulher.

Claro que não é só em português que o clima é tempo; mas em nenhum outro país o clima é tão interessante, e diverso, e bonito. E daí que a confusão entre o tempo que passa e o tempo que está seja mais interessante.

Perguntam-me amigos estrangeiros como é o tempo em Portugal, esperando que lhes fale de sol, mas o tempo em Portugal não é tão aborrecido e constante como eles desejariam.

Digo-lhes que temos, das quatro estações, a colecção completa. Temos um inverno que é inverno; uma primavera que só primavera poderia ser; um verão que não é outra coisa; um outono a que não se podia dar outro nome.

Mas falo assim para que eles me compreendam - e estou a mentir. Porque, ao contrário dos outros países onde o tempo-clima se confunde com o tempo-relógio, não ligamos muito às estações. Ninguém diz "Que bela primavera!" Ninguém se queixa, dizendo "Que horrível inverno!"

Por alguma razão se escrevem as estações do ano com letra minúscula. Não são grandes espingardas. Estão para o tempo como as palavras "homens", "mulheres" e "crianças" estão para cada pessoa. Dão uma ideia. Mas não passam disso.

Nós em Portugal temos meses.

Os meses são a coisa mais linda. Até lhes damos maiúsculas. Até lhes damos, quando se justificam, artigos definidos. Dizemos o Junho e o Julho. Mas Agosto é Agosto e Setembro é Setembro.

Em medida nenhuma se diz, destes meses tão diferentes, que são o verão. Julho é Julho; Setembro é Setembro.

As pessoas mais afeiçoadas ao tempo; aquelas que trabalham a terra ou vendem fruta nas praças; nem sequer em meses pensam - sabem mais.

Pensam em semanas.

Para eles a segunda semana de Maio é um tempo inteiramente separado. Sabem a semana dos pêssegos; a semana das cerejas; a semana da sardinha gorda; a semana das primeiras e últimas laranjas.

Às vezes, quando estou a discutir o mês de Abril - um dos mais interessantes e polémicos(oh coisa maravilhosa!) - com um motorista de táxi particularmente sábio, ele responde-me com meias frases, não querendo perder o latim com um mero amador como eu.

É o Abril que "ainda não entrou" - ou está "bem entrado" - ou "o fim" de Abril, como agora dizem estar a acontecer. Ainda ontem me disseram o seguinte: "Bem podem ficar com o Maio, que eu cá oriento-me bem com o fim do Abril!"

E é só quando se entra neste , que só o nosso clima permite, que se percebe porque chamamos tempo ao clima e clima ao tempo.

É isto:

Fala-se da segunda metade de Abril como quem fala das dez da manhã.

No relógio português, é como se houvesse 24 horas e 48 semanas; em que cada hora corresponde a duas semanas do ano.

E o mais engraçado e bonito é que a primeira metade de Janeiro, logo o primeiro mês do ano, corresponde à hora que vai da meia-noite à uma da manhã.

Como as duas últimas semanas de Dezembro, menos escura, representam, claramente, a hora que vai das onze da noite até à meia-noite.

Quem não compreende - ou, pelo menos, aceita este espanto - nada sabe do tempo português.

Hoje à noite, por exemplo, cinco planetas(Vénus, Mercúrio, Marte, Saturno e Júpiter) estarão invulgarmente próximos uns dos outros e poderão ser vislumbrados a conviver, à vista desarmada, como não voltará a acontecer senão daqui a sessenta anos.

Mas isso aos portugueses nada diz. Diz mais que estamos no princípio, ainda mal entrado, da última metade de Abril - o lindo patamar para a mágica primeira semana de Maio.

Há um poema de Herberto Helder que começa "Era Novembro". E mal lemos as duas palavras sabemos onde estamos, de uma maneira que é impossível para quem lê o famoso verso de Eliot - "April is the cruellest month".

Eliot está a emitir uma opinião discutível. Herberto está a estabelecer um lugar preciso.

E é preciso, também, não saber nada para não perceber que Eliot está a escrever na Inglaterra, onde o Abril é Abril apenas e constitui um arrastamento longínquo e indistinto de Fevereiro; e que Herberto está a pensar no Novembro luminoso e estranho da ilha da Madeira.

Em Portugal os nossos dias são as semanas dos países com um clima menos inteiro. E as semanas são os meses deles. E os nossos meses são as estações dos anos que têm. E as nossas estações são quase anos, como estações de comboios distantes.

Uma das coisas que os meus motoristas gostam sempre de ouvir, porque vai de encontro aos preconceitos políticos que são parte integrante da formação profissional deles, é a frase seguinte, que há muitos anos inventei para meter conversa com tão fascinantes intérpretes do tempo português:

"O que nos vale é o tempo, meu amigo! Se os políticos o pudessem estragar ou vender; já não o tínhamos..."

"É verdade...", dizem eles e começam a discorrer acerca dos políticos; até eu recentrar a discussão para onde mais me interessa, perguntando: "Como era o mês de Abril na sua terra?"

E que comiam ao pequeno-almoço e o que apanhavam da terra...

Eu gosto de falar do tempo. Se calhar foi de ter passado tantos anos a pensar e a escrever, no frio e cinzento Norte da Inglaterra, a minha tese de doutoramento, sobre a saudade.

Percebi que o tempo em Portugal, mais do que o amor, que parte dele, é o que temos de mais diferente. A frase de Mário Sá-Carneiro, "saudades do futuro", é incompreensível ou alegremente abstracta para os intérpretes ingleses. Mas, para nós, pode significar algo tão simples e concreto como "Deus queira que o tempo passe depressa".

Ou mesmo "Que pena nunca mais ser verão outra vez..."

Por que carga de nêsperas rosadinhas é que o nome que damos à estação mais quente é o futuro do verbo ver? Por acaso não é com certeza.

É que o nosso tempo, de horas e minutos, é o mesmo das saudades das nossas infâncias; do cheiro dos figos no fim de Julho; da caruma e das pinhas, da lona quente e do céu caído à volta do sol que não morre nem por mais uma.
Serem agora, por exemplo, nove horas da manhã e estar um dia lindo, ser Abril sem margem para dúvidas, e eu ter 46 anos e estar a mais de meio da minha vida, lembrando-me do meu pai e de brincar aos barcos com o meu irmão no jardim da nossa casa, cada um com um quarto de laranja nevado de açúcar na mão; ter falado há minutos com a minha mulher acerca de um sonho que ela teve, em que a cadela dela, a Cocas, dormia no mesmo cobertor cor de rosa com os nossos três gatos; faltarem quatro horas para ir almoçar; cinco para me apresentar a tribunal como arguido numa merda qualquer e o barulho doce dos passarinhos a tresloucar e a sensação das lojas a abrir e das bicas a saír...para um português como eu, é tudo o mesmo; é tudo o mesmo tempo de mim e de nós.

O mesmo tempo.

Clima ou horas ou vida; mês, semana ou estado de espírito...em nós tudo se pode separar e é por isso mesmo, talvez, que tão felizmente se junta.

Se junta.

Como é que agora e sempre são, só entre nós, sinónimos tão doces? Porque se referem ao passado, talvez. Mas ao passado ainda há poucochinho, que não conta.

Ou então é destes dias.

1 comentário:

Thita disse...

Bom dia.
Este também adorei e sei quem o escreveu. É o senhor do Pastilhas, não é? Mas tenho que ler outra vez e mais devagarinho para perceber melhor. Já imprimi para o meu tio (um tio esperto como o meu avô) me contar mais coisas sobre este tempo. Porquê? Porque ele tem mais tempo, hihi...
Beijinhos.