19 de novembro de 2004

Todas as infâncias têm mistérios

- Sua Excelência sofre de fartura!
In A Cidade e as Serras , de Eça de Queirós

Todas as infâncias têm mistérios.
O tempo, normalmente, encarrega-se de explicar alguns: a maior parte das vezes, porque a compreensão do mundo e dos factos torna evidência o que antes era mistério.
Mas há outros que permanecem mistérios.
O meu avô não era homem de muitas letras, mas via-o frequentemente embrenhado na leitura ( ou então de ouvido colado à telefonia, para ouvir o futebol). Em dado momento, reparei que o livro era sempre o mesmo: A Cidade e as Serras.
Mais tarde, quando a frequência do Liceu, me exigiu a leitura de romances de Eça de Queirós, Maias, Primo Basílio, o mistério avolumou-se : aquela leituras eram pesadas, carregadas, povoadas de personagens perversas, e havia incesto, havia adultério, suicídio...e nada disto me podia sugerir que o livro que o meu avô lia e relia fosse, o que mais tarde entendi, uma homenagem às coisas simples e verdadeiras.
Peguemos no livro! As primeiras páginas, repletas de adjectivos em dose dupla, como já é hábito em Eça, Zé Fernandes (o narrador/ personagem) apresenta-nos três Jacintos: Jacinto- avô, “gordíssimo e riquíssimo”, que, sem qualquer fundamento ideológico, desenvolve tal fanatismo pela causa miguelista, que tem que largar o país e partir para França, onde sempre viveu e onde morreu de indigestão de uma lampreia de escabeche; Jacinto-pai, “esguio e lívido”, que não viveu, passou pela vida como uma “Sombra”, como era conhecido entre os criados; e finalmente o Jacinto- neto, tido desde o berço como um afortunado, graças à herança genética do avô ou à boa -sorte das mezinhas da avó. A sua boa saúde de criança é resumida na frase “Não teve sarampo e não teve lombrigas.” E quanto à sua inteligência : “As Letras, a Tabuada e o Latim entraram por ele tão facilmente, como o sol por uma vidraça.”
Além de saudável e inteligente, o Jacinto era rico e tinha amigos. O Jacinto tinha tudo para ser feliz. Mas o que é ser feliz? Jacinto tinha concebido a ideia de que o homem só pode ser “superiormente feliz” se for “superiormente civilizado”, o que o arredava definitivamente da possibilidade de viver noutro sítio que não fosse Paris, o centro da civilização. E, enquanto pode, apetrecha a sua vida de civilização: o 202, o seu palácio nos Campos Elíseos, tem tudo o que se pode ter no final do século dezanove: máquina de escrever, máquina de calcular, telefone, fonógrafo, telégrafo, numeradores de páginas, coladores de estampilhas, águas quentes e frias, elevadores para a comida, penas eléctricas, etc. Até um elevador para pessoas, equipado com sofá e biblioteca, para uma viagem de sete segundos...
Depois de ter tudo e de tudo conseguir, Jacinto começa a padecer duma terrível enfermidade, o Tédio, que o abala tão tremendamente, que até o bigode murcha “caído, em fios pensativos”. E sofre muito, o Princípe da Grã-Ventura. Sofre de fartura, um sofrimento doloroso que o afunda num desespero imenso. O seu amigo Zé Fernandes e o fiel criado Grilo assistem, impotentes, ao desmoronar de uma felicidade, construída racionalmente sobre uma teoria, a da civilização.
Quando tudo parece perdido, quando parece não ter fim tão grande padecimento, Jacinto vê-se a braços com um problema legal, que o obriga a viajar até Portugal. Só há uma solução: encaixotar a civilização, transportá-la e aguentar mais este revés da vida.
E é neste revés que Jacinto vai reencontrar-se. É do lado de lá da civilização, é experimentando a absoluta ausência das marcas da dita civilização que Jacinto começa a encontrar-se: primeiro, na capacidade de deslumbrar os sentidos, nas paisagens, nos paladares, depois na satisfação da sua generosidade, cumprindo um sentido de justiça, o seu, o que lhe valia a fama de D. Sebastião, para alguns, e “Pai do Pobres”, para outros. E, por fim, na realização da felicidade pessoal, aquela que vai contrariar o seu pessimismo ao considerar-se o último Jacinto, “Jacinto ponto final”.
E o mistério reaparece: qual a razão da preferência desta leitura? Nunca cheguei a perguntar, porque adiei a leitura.
Algumas razões, eu adivinho. Outras, pressinto ainda descobrir, um dia que visite Tormes.

Leitura sugerida- A Cidade e as Serras de Eça de Queirós
José Maria Eça de Queirós nasceu na Póvoa de Varzim, a 25 de Novembro de 1845 e faleceu em Paris, a 16 de Agosto de 1900. Licenciado em Direito, pela Universidade de Coimbra, seguiu a vida diplomática, mas foi a carreira de escritor que lhe conferiu toda a notariedade. A sua intervenção intelectual revolucionou a mentalidade da sua época, tornando-o na figura mais emblemática da geração de escritores realistas.


Publicada a 23 de Fevereiro de 2001, na Nova Gazeta, Montijo

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