17 de janeiro de 2005

Do Público 17 de janeiro de 2005

O escritor que cultivou uma solidão radical
Miguel Torga morreu há dez anos

Carlos Câmara Leme
PÚBLICO
Faz hoje precisamente dez anos, morria em Coimbra, depois de cinco longos meses de agonia no Instituto de Oncologia da cidade banhada pelo Mondego, o contista, romancista, poeta e diarista Miguel Torga (1907-1995), pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha.

Não foi uma morte qualquer. Como escreveu então no PÚBLICO Eduardo Lourenço, "com a morte de Miguel Torga não é apenas uma referência tutelar da literatura e da cultura portuguesa que desaparece, mas toda uma atitude histórica do criador em relação à Literatura. (...) Torga podia dizer, com razão, que escrevia como quem lavrava a terra." Mais: "Ninguém, entre nós, investiu com tanta paixão e energia na construção da sua estátua interior" que, diga-se, nem sempre foi compreendida pelo mundo que rodeou até ao fim da vida o autor de "Contos da Montanha".

Para construir o seu percurso, Miguel Torga teve que travar a pulso, desde muito cedo, batalhas quixotescas. Nascido a 12 de Julho de 1907, no seio de uma família de camponeses muito pobre de S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes, nem dinheiro havia para entrar na escola primária. Pôs-se, como era da praxe, a hipótese do seminário, mas o pequeno Torga acabou por ir parar ao Brasil, depois de uma passagem por uma casa burguesa do Porto como criado. Profeticamente, resume esta fase da sua vida no que viria a ser uma boa parte do seu percurso literário e existencial: "E fui ficando irremediavelmente sozinho no mundo...".

No entanto, será o Brasil (o destino tem destas coisas), onde trabalhará durante cinco anos numa fazenda de Minas Gerais, a permitir-lhe começar a criar o seu universo. Um tio ajuda-o financeiramente e Torga mostra a sua raça quando regressa em 1925: tira, em três anos, o curso geral dos liceus e, em, 1933 é doutor em Medicina pela Universidade de Coimbra, onde se virá a especializar em Otorrinolaringologia.

Início pela poesia
Literariamente, Torga começou pela poesia e, em 1933, já tinha quatro livros em carteira. Mas os anos 30 são definitivamente marcados pelas avenças e desavenças que constituíram a criação da revista e do grupo da "Presença", com João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca e José Régio. Abandona a revista em 1930, com Branquinho da Fonseca e Edmundo de Bettencourt, e é impedioso, mais tarde, quando escreve em "A Criação do Mundo", porventura o seu título mais conseguido: "Intelectualizados da cabeça aos pés, mal tocavam a realidade. Eram platónicos no amor, teóricos no desporto, metafísicos no convívio."

É com "A Terceira Voz", um livro de prosa, que cria o pseudónimo Miguel Torga. A escolha não surge por caso: Torga é o nome de uma urze de Trás-os-Montes; Miguel é uma homenagem do escritor àqueles que o fazem esquecer Aljubarrota e o Tratado de Tordesilhas. Consequências: desde então, Torga não deixou de ser associado ao legado ibérico e, simultaneamente, a ser carimbado como um autor telúrico (que em ambos os casos o foi...).

Em 1941, instala-se em Coimbra, no Largo da Portagem, num consultório que permanece no activo quase até ao fim dos seus dias. Além de estadas regulares em S. Martinho de Anta, viaja pouco. Quando o fez, em 1936, relata o que vê - "O Quarto Dia da Criação do Mundo" (1939) - e não se sai bem: o livro é apreendido pela omnipresente censura de António de Oliveira Salazar; vai parar à prisão do Aljube, em Lisboa, onde fica preso alguns meses; vê os "Contos de Montanha" (1941) ser também retirado das estantes das livrarias e, como se não bastasse, a sua mulher Andrée Cabrée Rocha é impedida de ensinar na universidade.

Nem tudo é negro, porém, nos anos 40. Publica "Os Bichos" e "Novos Contos da Montanha" surge em 1944 (ainda hoje, talvez, os títulos mais conhecidos do grande público). Mas o escritor não se deixa deslumbrar. Sente, como escreve em "A Criação do Mundo" (V Volume), "um silêncio sepulcral à volta de cada obra que dava a lume." Desafaba mais e sobe a parada: "Era como se não existisse no mundo das letras."

Um monólogo pessimista
Este anátema não passa despercebido a Eduardo Lourenço, que, em 1955, publica "O Desespero Humanista de Miguel Torga e as Novas Gerações". Torga podia escrever e publicar sem parar, mas ia construindo, ao mesmo tempo, "um dos monólogos mais radicais de toda a poesia portuguesa" - um monólogo pessimista que Miguel Torga, quer se queira quer não, cultivou até ao fim.

Pode ter continuado a publicar à velocidade de cruzeiro nos anos 50 e 60, altura em que é pela primeira vez proposto para o Prémio Nobel da Literatura. Os vários volumes do "Diário" (chegou ao XVI) podem continuar a ser devorados sempre que sai um volume (um pouco como acontecerá com a "Conta-Corrente", de Vergílio Ferreira), a sua obra chega à meia centena de títulos, os seus livros podem estar traduzidos em 16 línguas, o Governo em 1978 pode mesmo homenageá-lo por ocasião dos 50 anos da sua carreira literária, pode ter sido o primeiro escritor a ganhar o Prémio Camões, em 1989, ou o Prémio Vida Literára/1991, atribuído por Presidente Mário Soares... Não importa, Torga resiste a tudo e não desarma no seu mundo solitário e pessimista.

O romancista Mário Cláudio acertou em cheio quando resumiu a vida do autor de "Orfeu Rebelde", há dez anos, no PÚBLICO, escrevendo que Torga foi "um solitário voluntário, um exilado no próprio país".

A sua obra, porém, está aí. Para ser lida e, muito provavelmente, para ser descoberta.

Sem comentários: