9 de janeiro de 2005

UM CICLISTA

Domingo, 09 de Janeiro de 2005

José Eduardo Agualusa

O passado é como o mar: nunca sossega. As casas encolhem, como os velhos, ao passo que as árvores crescem sem parar. Quando regressamos, decorridos muitos anos, aos lugares da nossa infância encontramos árvores gigantescas e, sufocando de terror à sombra delas, as casas minúsculas que um dia foram nossas. Mal reconhecemos a cama de bonecas em que dormimos quando éramos crianças. E o quintal? Era imenso. Tem dois palmos de fundo.

O meu pai dizia-me - "a vida é uma corrida, meu filho. Quem olha para trás enquanto corre, arrisca-se a tropeçar".

Eu não olho para trás. Avanço por vezes de olhos fechados, e tropeço, como os outros, e eventualmente caio, mas não olho para trás. Nunca fui pessoa de cultivar saudades. Não colecciono álbuns de fotografias, e jamais guardei pétalas secas entre as páginas de velhos livros. Sigo sempre em frente. Quando me perguntam para onde vou encolho os ombros. Rio-me:

"Adiante."

O mundo é infinito para quem viaja a pé. Eu viajo a pé, à boleia de algum camião, ou de bicicleta. Andando de camião, ou de bicicleta, o mundo parece um pouquinho menor, mas ainda assim, digo-lhe, é uma imensidão. Não tenho muitos estudos. Aprendi a ler e a contar. Raramente leio o que quer que seja. Quando encontro algum jornal lanço uma vista de olhos à página da necrologia. Como não conheço ninguém, não tenho amigos em parte nenhuma, choro pelos desconhecidos, aqueles que me parecem mais simpáticos, vou pelo semblante, entende?, ou pelo nome. Há sempre algum José por quem chorar. Não choro de pena. Choro apenas para praticar.

Enquanto viajo conto os quilómetros para enganar o tédio. Desconheço o que me espera quando cruzo uma fronteira. Não passo duas vezes pelo mesmo lugar. Cheguei ontem, por exemplo, do Huambo. O senhor conhece? Pois olhe, eu também nasci numa cidade chamada Huambo, mas muito longe deste país, nas montanhas do Peru. Tinha uma leprosaria que o Che Guevara visitou. Não há lugares repetidos. Só os nomes se repetem.

Como faço para sobreviver? Estou atento. Há poucos dias um camponês disse-me apontando em redor: "Tudo o que não é mato engorda". Concordo. Veja bem: as mangas. Durante um mês comi apenas mangas. Só o perfume das mangas, se forem doces, já alimenta. Isso, ou um canavial a arder. Goiabas maduras. Também se pode sobreviver muito tempo comendo unicamente milho ou feijão. Um homem em andamento não morre de fome. Entrei em Angola, pedalando esta bicicleta, e em poucos minutos estava no meio do deserto. Fui subindo. Na primeira noite dei com um acampamento de pastores. Ofereceram-me água e leite azedo. Na tarde seguinte parou um jipe à minha frente. Um branco e um preto. Ficaram muito admirados por verem um tipo assim como eu, meio índio, tão longe de tudo. Também eles me deram água. Levaram-me no jipe até Mossamedes. Depois subi a serra, sozinho, na minha bicicleta, e fiquei uma semana no Lubango, a descansar. Acontece chegar a uma cidade e achar que é agradável e então deixo-me estar um mês ou dois, procuro trabalho, engordo, e sempre ganho algum dinheiro para gastar no caminho. Lavo pratos, esfrego o chão, e além disso sou um bom cozinheiro. Quando sinto que me começo a afeiçoar a um lugar despeço-me e vou-me embora.

Quem não ama não sofre. Quem nada tem, não tem nada a perder. É o que penso.

Um dia adormeci no topo de um enorme despenhadeiro. Acordei com a primeira luz. A manhã pousou-me no ombro, como um pássaro, e ali ficou. Diante de mim havia o mar. Atrás de mim o céu profundo, altas montanhas. Era um lugar sem exemplo, arredado do mundo, como um elefante velho que se perdeu da manada. Até àquele instante eu viajava sem saber porquê. E então, sentado sobre o abismo, ocorreu-me pela primeira vez essa questão. "O que faço aqui?". Pensei em voltar para trás. Porém, tinha caminhado demais, e já tanto fazia recuar como avançar. Continuei em frente. Hoje viajo para saber porquê. Desaponta-o, talvez, este final - esperava outro?

Se tivesse ficado lá atrás, nas montanhas do Peru, onde nasci, venderia botões, como o meu pai. Teria algo a perder, família e dinheiro, por certo sofreria mais. Quanto ao resto não sei se seria, em substância, muito diverso do que sou hoje. Ignoraria certas coisas, sim, o senhor tem razão, mas não me prejudicaria tal ignorância, pois nem sequer daria por ela.

Não sei. Acho que um dia eu paro.

1 comentário:

Thita disse...

Bom dia, "tia" Madalena.
De vez em quando venho dar aqui um saltinho e por acá fico a ler.
E gostei muito desta história.

Um beijinho.