27 de fevereiro de 2005

Pigmalião de Bernard Shaw

Quem é que lhe pediu que me transformasse num cavalheiro? Eu era feliz.

Uma peça de teatro não se lê! Vê-se! O teatro representa-se, por definição literária. Para o dramaturgo não há leitores. Há espectadores!
Mas se a peça valer quatro ou cinco horas de boa leitura...
Além do mais, essa peça pode não estar em cena, em parte nenhuma do mundo, mas o livro está ali, ao nosso alcance. A nossa imaginação prodigiosa encarrega-se da encenação e do resto.
Depois das pancadas de Moliére, sobe o pano.
A acção decorre em Londres, no princípio do século. Vinte, entenda-se.
Tudo começa depois de uma saída do teatro, perto de Convent Garden.
Uma florista tenta vender os seus raminhos às pessoas chiques, que se abrigam da chuva súbita e tentam apanhar um táxi. A florista fala como sabe. Ninguém lhe ensinou mais, nem melhor. De repente, assustada, descobre que um cavalheiro aponta o que ela diz. A sua imaginação sem pecado conclui que se trata de um polícia e brada aos céus a sua inocência. Grita cada vez mais, à medida que o tal cavalheiro lhe vai revelando, com segurança, pormenores da sua origem. E não só! Outros, por ali, vêem escancarada a sua proveniência, as suas terras, os seus bairros e até as suas ruas.
As pessoas continuam à procura de “taxe” , mas “incaminharam-se” para o “otocarro” quando a chuva parou. Pobre florista! Pobre Liza! O homem dos apontamentos humilha-a, do alto da sua imensa sabedoria. Chama-lhe “folha de couve amarfanhada” e, com uma altivez muito pouco cristã, recorda-lhe que a fala é um dom divino e que a língua em que se expressa é a mesma da Bíblia! Depois de traduzida, supomos nós. Mas a sua antipatia dissipa-se levemente, ao reconhecer noutro cavalheiro, que protegia a pobre florista dos insultos deste homem douto, o coronel Pickering, eminente linguista. Seguem os dois para casa de Higgins, antipático professor de Fonética, que entretanto, no enlevo do seu próprio saber, afirma poder ensiná-la em três meses e fazê-la passar por duquesa.
Segundo acto. O cenário é a casa do professor Higgins, em Wimpole Street, mais precisamente o seu laboratório de Fonética, onde se podem encontrar objectos que medem a fala, com rigor científico: fonógrafos, laringoscópios, tubos de órgão, etc. Para adoçar o ambiente, sobre o piano, pode ver-se um recipiente com fruta, doces e chocolates. Mrs Pearce, a dedicada governanta, anuncia a chegada de Liza, que quer aprender a falar bem, correctamente, embalada na promessa, que ouvira na noite anterior, de se transformar noutra pessoa. Talvez até possa vir a ter uma loja de flores! Quem sabe? Nova humilhação, para a pobre vendedeira de flores, que afirma e reafirma a sua seriedade. “Inté lavei as mãos e cara antes de vir...” Até a sua higiene serve de argumento para convencer o professor, que acaba por a considerar “uma proposta quase irresistível”.
O pai de Liza vem a casa de Higgins, reclamando o seu direito a receber qualquer coisinha em troca da filha, desconhecendo completamente as razões por que ela ali está. O pobre homem, bêbado de estado normal, começa a ver as coisas complicarem-se, mas, fascinado pela sua fala, pelos dotes oratórios, pela capacidade argumentativa, o Professor oferece-lhe muito mais do que ele podia esperar. Torna- -se um homem rico, de repente. Mais tarde perceberemos melhor ...
Liza aplica-se e aprende a manter um pequeníssimo diálogo, com a correcção e a elegância da alta sociedade. Mas a primeira prova pública, em casa da mãe do professor, é um desastre. Contudo, os convidados da Sra Higgins, especialmente Freddy, rendem-se à moderna “gíria” das gentes de Londres e ao encanto da jovem.
Ainda não se esgotaram os seis meses de aposta e Liza, ou melhor Eliza Doolittle, acompanha o Coronel Pickering e o Professor a um baile. A anfitriã, cautelosamente, não dispensa a presença de um perito de línguas, preparado para desmascarar qualquer vigarista, que se queira infiltrar na elegância dos salões. É a prova máxima. Nepommuck, assim se chama o especialista, fora discípulo de Higgins e descobre que a “filha adoptiva” do Coronel, é... uma princesa húngara.
Mas a noite não é de festa para Liza, ou Eliza. Os dois homens celebram a sua vitória sobre a ignorância de Nepommuck. Quase esquecem a matéria da aposta: um ser humano. Liza chora bem alto a sua aflição: ela já não pertence às ruas de Londres. “Agora que fez de mim uma senhora, já não sirvo para nada”.
A nossa imaginação é agora chamada a decidir o desfecho romântico: Eliza sai de casa, apanha um táxi com Freddy....E o professor? “Ouça” a conversa dos dois, em casa da Sra Higgins, pela primeira vez, de igual para igual. Eliza, com a correcção e elegância que aprendeu, dá ao professor uma lição de humanidade.
Uma linha mais, apenas para referir a excelência da tradução do Professor Doutor Fernando Moser. Nunca esqueci o que me ensinou, nem o seu modo simples, tranquilo, humano e belo.
George Bernard Shaw nasceu em Dublin em 1856.Dramaturgo, por excelência, escreveu também ensaios e escritos políticos, tendo-se também distinguido como jornalista. Em 1935 recebeu o Nobel da Literatura. Morreu em 1950 e dos seu testamento constava um herdeiro: a língua inglesa. Pretendia que se inventasse um novo alfabeto inglês, cuja base fosse a Fonética.

1 comentário:

Thita disse...

Bom dia.
Não tenho tido muito tempo mas quando tenho gosto de passar por aqui pois tem leituras muito boas.
Por vezes até aproveito algumas ideias para fazer trabalhos na escola, hihi... (sem copiar!)
Agora vou ler um bocadinho mas primeiro deixo um beijinho e um xi-coração para a "Ti" Madalena.