Aquela que dizia "a escrita, sou eu", viveu uma vida que ainda hoje aparece como um jogo de pistas escondidas, desvendadas apenas na sua obra impressionante. Dez anos depois da sua morte, Marguerite Duras permanece uma escritora fascinante e misteriosa. Por Ana Navarro Pedro, Paris
"A história da minha vida não existe", escreve Marguerite Duras em O Amante. Este livro autobiográfico - todos o são, de certo, mas não de forma tão abertamente reivindicada - faz dela, em 1984, a escritora francesa mais publicada em França, mais traduzida, mais estudada nas universidades do mundo inteiro. Celebridade mundial, honras, fortuna... Duras tem 70 anos. Os biógrafos começam a exultar com a ideia de examinarem uma já longa vida feita de exibição e de dissimulação, de ódio e de amores brutais, de sedução e de combates.
Mas Marguerite Duras não autoriza mais ninguém a escrever sobre Marguerite Duras. Quem a tenta sondar, enreda-se na tela de confidências e de desmentidos. Perde-se num póquer mentiroso do verdadeiro e do falso. Consome-se na escuta impotente de monólogos que a escritora desenrola, arrogante, triunfante.
Uma jornalista e ensaísta, Laure Adler, levantou, porém, o desafio. Uma amizade de 12 anos com a escritora, a anuência desta, se bem que reticente, para inúmeros encontros e entrevistas, interrompidos inúmeras vezes pelo álcool, pela doença, pelas perdas de memória, e seis anos de paciente investigação - "o biógrafo tem o dever de ser céptico", diz a autora - redundaram em 600 páginas de uma biografia que, no fim, reconhece ter conseguido apenas "aproximar-se da verdade" (Marguerite Duras, 1998, Gallimard).
"Eu sou um assunto em ouro", dizia Duras, ávida, a Yann Andréa, o último amante, e enfermeiro, e bode expiatório, encontrado em 1980 quando ele tinha 27 anos, e ela já 65 anos. Mas quem era ela? "Não sei, eu, se conseguiria suportar Duras", gatafunha a escritora, teatral, na margem de um dos seus cadernos, encontrado por Laure Adler. "Julgamos saber e depois não, nunca", diz Duras pela boca de Emmanuelle Riva, em Hiroxima, Meu Amor. Da sua vida, ficam como marcos algumas fotografias, e umas datas. A sua história, há que procurá-la na sua obra.
De seu verdadeiro nome Marguerite Donnadieu, a escritora francesa mais exibicionista e mais enigmática do século XX nasceu em 1914 em Gia Dinh, uma aldeia perto de Saigão, então a principal cidade da Cochinchina. Aos quatro anos, a menina fica órfã de pai, um professor de Matemática francês. A mãe, tão odiada e tão amada, como o revelam O Amante e Uma Barragem contra o Pacífico (1950), regressa a França com os três filhos. Mas esta professora de escola primária esquece-se de mandar a filha à escola. "Foi, creio, a época da minha vida em que toquei mais de perto a felicidade perfeita. Aos oito anos, não sabia ler nem escrever", recordará, mais tarde, a escritora.
Em 1923, a mãe regressa à Indochina e instala-se com os filhos numa região do Camboja, onde compra uma quinta não longe do mar. A ruína não tardará: os sonhos grandiosos de fortuna atolam-se nestas terras inundadas com água salgada seis meses por ano, sem que a família consiga levantar uma barragem contra a realidade. Durante este período, Marguerite passa dias inteiros empoleirada nas árvores ou a explorar a floresta tropical com o irmão adorado.
Apesar da pobreza da família, a adolescente estuda no excelente liceu francês de Saigão. É na travessia do delta do Mekong que encontra "o amante", Huynh Thoai Lê, herdeiro de uma família de mandarins, que, durante dois anos, vai pagar todas as despesas da família Donnadieu.
Mitterrand e os nazis
Aos 18 anos, Marguerite regressa a França para estudar Direito. Já na altura, tem toda uma corte de estudantes fascinados com a sua vida exótica e a sua personalidade carismática. Um deles conseguirá casar com ela, em 1939: Robert Antelme, redactor na Prefeitura de Polícia.
A Segunda Guerra Mundial rebenta, e a biografia oficial de Duras esquecerá durante muito tempo - até à obra de Laure Adler - os episódios pouco gloriosos deste período. Antes de entrar na Resistência, em 1994, Marguerite Duras preside à comissão de controlo do papel de edição, sob tutela da ocupação alemã nazi. Desapareceu também da bibliografia de Marguerite Duras um romance da época, fortemente colonialista, segundo Adler, L"Empire Français.
Mas fica na memória o primeiro verdadeiro romance, Os Insolentes, publicado pela Plon em 1943. Na Resistência, combate na rede de François Mitterrand, que seria mais tarde Presidente da República, e apaixona-se por Dyonis Mascolo, com quem terá um filho. Este verdadeiro ménage à trois vive tranquilamente na rua Saint-Benoit, nº5, em Paris - morada célebre de Duras até ao fim da vida.
A rede da Resistência cai em 1944. Mitterrand consegue salvar a escritora, mas Antelme será deportado para o campo de concentração de Dachau. Duras adere ao Partido Comunista Francês (PCF). Mais tarde, Duras cria uma personagem, Thérèse, protagonista do romance A Dor, que tortura com prazer um bufo que denunciara uma rede de resistentes. Duras gaba-se de descrever aqui um episódio autobiográfico, embora mais tarde fuja a confirmar esta reivindicação.
Excluída do PCF, zanga-se com o camarada e escritor Jorge Semprun, que acusa das piores torpezas, sem dar a mais pequena prova. Moderato Cantabile granjeia-lhe em 1958 fama e fortuna. Desesperante e desesperada, viciada no álcool com que a mãe a intoxicara desde pequena, para a fazer engordar, afortunada, mas ávida de dinheiro desde a infância pobre, paranóica e fascinante, Marguerite Duras multiplica os romances, as peças de teatro e os guiões de cinema, onde se estreia em 1960 com Horoxima Meu Amor, sob a direcção de Alain Resnais. Aos 59 anos, deixa-se tentar pela realização de cinema, com Índia Song, que faz sensação em Cannes, em 1973.
Uma travessia do deserto termina em 1984 com O Amante. Eternamente provocante, reivindicando sempre a maldade para poder amar - "Tornei-me injusta e má, acredita", diz a mãe ao filho, na peça Dias Inteiros nas Árvores -, Marguerite Duras continuará a fascinar até à morte, a 3 de Março de 1996.
Laure Adler recorda na biografia da escritora uma frase que ela escrevera durante a revolta estudantil de Maio de 1968 e que seria o seu mais perfeito epitáfio: "Não sabemos onde vamos, mas não é uma razão para lá não ir."
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