5 de agosto de 2006

António Pinho Vargas

Hospitais Para um Manual de Sobrevivência para doentes e acompanhantes
Aminha mãe planeou a sua doença e a sua morte com a sabedoria ancestral das minhotas. O momento escolhido para a dor de cabeça indescritível provocada pelo aneurisma cruel aconteceu no fim de um dia passado com os netos, levados por ela aos sítios onde se ia encontrar pela última vez com as amigas do Centro Bem-Fazer e depois com as outras velhotas do Café. Como sabia que o seu filho vive em Lisboa e passa temporadas em Inglaterra, escolheu para o transe que a levou a dois hospitais, um dia no qual ele pudesse estar presente quase desde o início. O que ela não podia saber era que ao entrar num hospital a sua idade avançada, 83 anos, iria ser objecto de vários tipos de considerações, por exemplo, de um médico com vocação administrativa sobre o que custa ao Estado um doente em coma por dia e por ano (10.000 contos por ano, disse). De facto, esteve em coma 5 ou 6 dias. Depois, as esperanças eram poucas para alguns médicos, algumas para outros, mas surpreendentemente mais tarde abriria os olhos, agarrava as mãos que lhe eram dadas, tinha um olhar doce e expressivo e passou certos dias algumas horas sentada numa cadeira de rodas. Fui contactado um mês depois para começar preparar a sua saída do hospital.Também não saberia que o seu filho, apesar dos seus esforços incessantes iria gradualmente ficar esmagado pela impotência de quem sabe que por mais que proteste, reclame e exija explicações, não conseguiria enfrentar a burocracia gigantesca que é hoje o funcionamento normal de um hospital. Talvez imaginasse que lá trabalha ainda gente admirável, que possui ainda uma memória do código deontológico, uma ideia do que é um serviço. Como uma jovem médica que, quando pedi explicações sobre um inesperado adiamento da cirurgia para o dia seguinte, sábado, me disse discretamente que não podia dizer o que ia dizer mas que apoiava e admirava o que eu estava a fazer. Mas, trabalha muita gente nos hospitais que esqueceu há muito tudo isso. Trava-se um combate quotidiano entre os admiráveis e os outros. Pode acontecer ir sair um médico tão digno de respeito que faço questão de lhe dar um abraço e ficar responsável alguém que sei antecipadamente que nem sequer irei ver (que poderei nem querer ver) mas que talvez a minha mãe - impotente na sua cama a olhar a impotência do seu filho - não se importasse de ter visto.Os que decidiram adiar a operação marcada no dia anterior fizeram-no com a leveza de quem sente o aproximar do fim-de-semana. Nesses dias um hospital fica reduzido aos médicos da urgência que, além disso, tem a seu cargo todos os que estão nas enfermarias. A partir de sexta-feira às 4 da tarde até à segunda-feira seguinte os hospitais tornam-se locais perigosos. Basta haver muito trabalho na urgência para a situação dos doentes internados ficar próxima do abandono. "Já alertámos os médicos, já estão avisados" repetem as enfermeiras, mas a próxima acção forte irá ser apenas segunda-feira. Os estragos da espera podem ser grandes ou fatais. Mas os burocratas administrativos que cortam nas finanças estão no seu justo descanso semanal e deverão pensar que quando for a sua vez de ir lá parar estarão a salvo. Estão completamente enganados. Nem sequer na privada estarão a salvo porque se alguma coisa corre mal os doentes dos hospitais privados são muitas vezes transferidos para os públicos, melhor equipados, com melhor tecnologia. É por isso que os Institutos de Oncologia são todos públicos porque não são rentáveis. Rentáveis são os DMI e alguns hospitais de tecnologia sofisticada onde os mesmos médicos que estão de manhã nos públicos estão à tarde "a operar".O combate político-económico sobre a saúde pública e privada tem sido feroz. Por isso, face ao tal adiamento - não estava disponível um neuroanestesista no Hospital Central da Região Norte (!) - quando perguntei se teria hipóteses de reunir uma equipa de neurocirurgiões para operar num hospital privado e me é dito "Não digo que não...", a revolta e a repugnância que senti não pode ser escrita. A resposta que dei foi fatal: "Então aqui não podem mas se for na privada, como vão ganhar mil contos cada um, já podem?" Pensei e disse que era inaceitável. Mas estava enganado. Parece que actualmente é prática corrente. Como sabia que estava em perigo de vida e cada hora que passava agravava as expectativas de sucesso entrei em pé de guerra, usei todas as armas à mão, fiz ameaças de todo o tipo e a operação que tinha sido adiada para sábado - o neurocirurgião em causa tinha feito questão de me torturar dizendo que nem no sábado me podia garantir... - afinal foi nessa mesma noite às duas da manhã. Porque o chefe da equipa médica da urgência nessa noite se pôs em acção e persuadiu os renitentes que seria melhor operar. Agradeço-lhe por isso mas não pode ser. Não tem explicação aquilo que foi ouvido por uma porta indiscreta: "Parece que está cá a mãe de um VIP (repugnante palavra) e "eles" meteram água". Como é possível? E as outras mães ou pais?Alguns médicos precisariam de uma reciclagem sobre o que significa ser humano. Tornaram-se negociantes da vida e da morte ao melhor preço. Está muito dinheiro em causa e nunca faltarão clientes. A nota 19 exigida para entrar em Medicina afasta muito provavelmente verdadeiras vocações em detrimento de uma formação que privilegia a terapêutica by the book e negligencia o olhar atento para a pessoa doente. O corpo que está na cama é um caso, um dossier. A rápida ronda matinal - há quantas décadas é que é assim? - seguida de uma prescrição para o resto do dia e da noite, deixa nas mãos dos enfermeiros o real contacto com as pessoas. O discurso sobre a qualidade de vida, sobre os hospitais anglo-saxónicos ou americanos onde a partir de uma certa idade - 70 disseram-me - já nem se entra em cuidados intensivos traduz na verdade a aplicação das políticas que esses países impõem ao resto do mundo. Os velhos são um problema. Enquanto puderem comprar os medicamentos que lhes prolongam a esperança de vida podem fazê-lo. A indústria farmacêutica agradece e acumula lucros fabulosos. As visitas dos doentes graves circulam pelos corredores dos hospitais como almas penadas, com a paralisia estampada no rosto desfigurado pelo sofrimento. Mesmo uma pessoa que vai morrer é uma pessoa. Talvez por isso uma enfermeira (admirável) me tenha dito que era importante estar sempre lá, perguntar, reclamar, porque o comportamento habitual se resumia a três tipos: os que não sabem, os que não podem e os que já desistiram de protestar, de pedir informações ou explicações. Mas há muito pior: como a mulher de 30 anos do quarto ao lado a quem foi prescrito noutro hospital, primeiro, parar com a pílula; três dias depois, recomeçar a tomar; e na terceira ida ao hospital, sugerido consultar um psicólogo. A sua mãe opôs-se: a minha filha não está bem, não precisa de psicólogo nenhum. Tinha um aneurisma e terá danos irreversíveis se sobreviver.Muitos médicos começam as frases por "Estive agora nos Estados Unidos e..." mas esquecem-se de referir a forte responsabilização, os processos e as indemnizações a que lá estão sujeitos administrações e médicos capazes de cometer erros grosseiros e repetidos deste calibre. Assim justifica-se um processo judicial. Para a maioria dos outros casos será urgente a redacção de um Manual de Sobrevivência para doentes e acompanhantes. Pianista e compositor