27 de março de 2008

José Eduardo Agualusa

Roda de choro
"O importante não é o veículo, mas a viagem", disse-me o taxista, como a desculpar-se pelo estado do carro. Escrevo a palavra taxista, demoro-me a olhá-la, e depois apago-a. A mim a expressão taxista lembra-me sempre o seguidor de uma qualquer ideologia vagamente totalitária: "Fulano é um nacional-taxista!". Prefiro dizer taxeiro, que me remete a padeiro, oleiro, costureiro, ofícios antigos, inquestionáveis, antes do aparecimento dos informáticos, dos pedagogos ou dos sociólogos. Contudo, quando vou ao Google encontro apenas sessenta e cinco citações para taxeiro, ao passo que taxista tem um milhão, quatrocentos e sessenta mil. Os taxistas, portanto, são em número largamente superior aos taxeiros. Permitam-me, porém, a insistência: o amável filósofo dentro daquele taxi carioca era muito mais taxeiro do que taxista. Apresentou-se. Chamava-se Jorge, mas todos o conheciam como Jorginho do Pífaro.
"Você gosta de choro?"
Jorginho tocava flauta em rodas de choro. Durante alguns minutos, enquanto o taxi deslizava através das ruas quase vazias, Jorginho discorreu animadamente sobre a origem do choro e do samba. Sábado alongava-se pelos passeios, num langor tropical. O sol, no alto azul do céu, abria os braços ao largo abraço do Cristo Redentor. Jovens surfistas, em tronco nu e bermudas, bebiam batidos de frutas ao balcão do "Bibi", a melhor casa de sucos do Brasil. Combinei com Jorginho que ele passaria pelo meu hotel, ao final da tarde, para me levar a casa de um amigo, grande tocador de cavaquinho. Efectivamente às cinco e meia ligaram-me da recepção, e eu desci. Jorginho tomara um banho e mudara de roupa. Já não era um taxeiro - era um amigo. Levou-me para Santa Teresa, para um velho casarão, com uma fachada de um amarelo manga, um tanto desmaiada. Duas palmeiras centenárias vigiavam a rua. Lá dentro um cavaquinho chorava, delicadamente, acompanhado por um violão e um bandolim. Deram-me uma cadeira. Jorginho sentou-se ao meu lado, retirou de um estojo uma flauta transversal, e juntou-se ao grupo. Como disse antes, era sábado, sábado completamente. As pessoas iam chegando, pessoas de origens sociais muito diversas, com diferentes tons de pele, diferentes credos e histórias familiares, sentavam-se, preparavam o instrumento que haviam trazido, e iam somando a sua própria voz - a voz do seu instrumento - à harmonia original.
A roda (compreendi de súbito) era o Brasil - metáfora musical de um país em construção.
Desde que nasci já vi morrer muitos países. Vi, inclusive, morrer impérios. Também já vi nascer alguns países. Percebi que, ao contrário do que me ensinaram na escola, países tendem a ser entidades frágeis e fraudulentas. Frágeis, na verdade, porque fraudulentas. Os melhores são puramente imaginários. Os piores, inteiramente artificiais. Artificiais não como uma flor de plástico - cuja mentira está apenas em tentar reproduzir a beleza viva de uma flor - mas como seria artificial, por exemplo, um cozido à portuguesa inteiramente feito de plástico. Sim, certos países não só são desnecessários, como não conseguem sequer parecer necessários.
O Brasil, pelo contrário, sempre me surpreendeu pela sua coerência e pela sua verdade. É um dos poucos casos que conheço de um país que poderia sobreviver, ao menos durante duas ou três gerações, à bela utopia anarquista do fim de todas as fronteiras. Talvez por ter sido desde o início - e continuar a ser - não tanto uma criação das elites, quanto uma criação popular. Talvez em razão da sua voracidade integradora. Ao contrário de tantos outros territórios doentes de desconfiança, nos quais, ao longo dos séculos, se foram estruturando culturas de rejeição, os brasileiros foram capazes de criar uma cultura de assimilação que tudo devora, transforma e faz seu.
Creio que foi naquela tarde de sábado que decidi ser carioca, a maneira mais feliz de se ser ao mesmo tempo, e sem conflito, angolano e português. Desde então venho-me empenhando bastante, mas suspeito que ainda me falta percorrer um longo caminho. Tenho paciência. Não esqueço, como fez questão de me lembrar Jorge quando nos conhecemos, que o importante não é o veículo: é a viagem.
Suplemento Pública de Domingo, 23 de Março 2008

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