10 de setembro de 2004

A Cartilha: Crónica dos bons malandros

Clara Ferreira Alves

O senhor Tony Blair, tal como antes deles o senhor Felipe González, acostumou-se ao «high life» e dali não sai, dali ninguém o tira. Apareceu, com a inimitável Cherie, ao lado do primeiro-ministro italiano Berlusconi, com a fachada de uma bela casa na Sardenha por trás. Os Blair foram até à Sardenha e à fortaleza de Berlusconi (numa zona protegida onde o comum dos mortais não poderia construir), e aí aboletaram durante a estação quente.
Quente mas, não tão quente como o Iraque, onde iraquianos, ingleses e americanos continuam a morrer e a ficar cobertos de moscas debaixo do sol e dos quarenta e tal graus de temperatura. O Iraque, transformado na desordem e numa sentença de morte do Médio Oriente, não incomoda a família Blair nem o senhor Berslusconi, que se banham nas águas transparentes do Mediterrâneo e comem lagostins e rizzoto à sombra da palmeira. O senhor Berslusconi apareceu mesmo com um lenço a amarrar a cabeça, estiloso, destinado, segundo um esclarecimento do seu médico pessoal, a esconder os vestígios de um transplante capilar a que se tinha submetido. Repare-se que, este ano, o senhor Berlusconi já tinha feito um lifting. É preciso ficar bem na fotografia e em frente ao holofote.

O primeiro-ministro italiano entra no trabalho depois das férias com a energia renovada e com a cara arrumada, o que decerto fornecerá mais uns anos de sobrevivência política. Governar a Itália era muito fácil, afinal, bastava ser dono das televisões.

Na Inglaterra, Blair também não se safou mal. Destruiu a BBC, escapou ileso dos escândalos e das mentiras e enganos, e David Kelly, o suicidado das armas de destruição maciça, não lhe tira o sono. Como diria o padre Américo, não há rapazes maus, e nesta história do Iraque, custe as vidas que custar, o petróleo há-de acabar por jorrar.

A aliança estival de Blair, o renegado socialista, com Berlusconi, o magnate amoralista, é a prova de que a vergonha morreu no deserto. O deserto ético em que vivemos, onde nada conta, nada se paga, e todos os fins justificam os meios. A fotografia das férias alegres de Blair e de Berslusconi é a prova de que as ideologias e as convicções estão mortas. E enterradas. No admirável mundo novo da imagem e do spinning, das «photo oportunities», vale tudo menos ter coerência. E vale mais ter um transplante capilar. Ainda veremos Barroso a banhos na Sardenha.

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