10 de setembro de 2004

A Cartilha: Os criminosos

Clara Ferreira Alves

O «causídico» Manuel Ayala, representante do Ministério da Defesa no caso do barco do aborto, terá comparado o aborto, a acreditar nos jornais, à eutanásia e às drogas duras. Segundo ele, começa-se no aborto, segue-se para a eutanásia e acaba-se nas drogas duras. É evidente que existe uma comparação entre estes três ilícitos penais, a de serem, justamente, ilícitos penais, crimes punidos pela Código Penal português. Mas, subjacente a esta comparação formal, está uma comparação de ordem moral, essa sim reprovadora e fundadora de todas as atitudes a favor da despenalização do aborto ou das drogas leves ou, se quisermos, da eutanásia. Ora esta comparação moral é errada, equívoca e mete tudo no mesmo saco.
As três situações são diferentes e os casos pessoal e juridicamente intrincados a que respeitam são diferentes. O aborto não devia ser considerado uma prática criminosa, pelas razões que todas as campanhas de despenalização justamente invocaram, e por que se fosse aplicada a lei com rigor, não seriam as mulheres pobres e as parteiras as condenadas e sim uma boa parte dos ginecologistas deste país e das mulheres ricas que recorrem ao aborto em território nacional em «condições de segurança». O aborto pratica-se, mal e bem, os que o praticam mal são apanhados e os outros não e ponto final. A hipocrisia dos políticos que falam do aborto como violação de uma ordem moral intrínseca ao homem, seriam provavelmente os primeiros a ser apanhados caso pudéssemos entrar mais profundamente nas suas vidas. É sempre o caso bíblico do apedrejamento da pecadora, o que não tiver pecado que atire a primeira pedra.

A eutanásia coloca problemas diferentes, embora se trate do direito à vida, e também aqui, ela é discretamente praticada por muitas famílias em casos desesperados e médicos complacentes e compassivos, desde que o estrato social seja muito alto ou muito baixo. No baixo, os hospitais limitam-se a deixar morrer ou a expulsar do hospital por falta de camas. No alto, prolongam indefinidamente a vida ou cortam a pedido, muitas vezes a pedido do doente. A hipocrisia continua.

No caso das drogas duras, mais pacífico, todos parecem de acordo em punir e muitos não concordam em somente tratar. O tráfico, crime organizado, tem muitos tentáculos, e tentáculos poderosos, e só os pequenos traficantes e consumidores acabam por ser apanhados. São mais uma vez situações hipócritas, condicionadas pela importância social do criminoso. O colarinho branco fica de fora, e o branqueamento de dinheiro da droga também. Nos três casos, a única coisa que importa na vida real é isto, quem tem ou não tem dinheiro, e não quem tem consciência.

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