30 de setembro de 2004

Menina Agustina Bessa Luís

A escala de Richter

A ilusão serve-se fria num dia de Verão

Vou começar assim: «Em filosofia, aquilo que devemos evitar é a verbosidade. Mas uma regra munida duma aplicação prática é sempre correcta.» O que quer dizer que uma história bem contada é a filosofia sem mal-entendidos.

Um dia de Verão, Clarissa, uma senhora morena que vestia um fato de sarja branco como se fosse andar de canoa no Sena em 1720, estava na praça de táxis que, como hoje ainda, não tinha demarcações. A caça urbana que é tomar um carro em plena avenida, no Porto, nunca fora encarada como perigosa. Clarissa, porém, teve nessa tarde a inspiração de viver como Trader Horn o simples facto de conseguir um táxi. Não soube como aquilo começou, mas, de repente, no meio duma turba de rapazes cheios da glória de grupo que é não duvidar dos pequenos actos, ela avançou e instalou-se. Dois mocinhos magros e arrebatados entraram também. «A senhora saia daí» - disse um terceiro. Era pequeno, sério, com ar soberbo, e era provavelmente o líder do bairro. Via-se que estava habituado a dominar as situações, e toda a tribo murmurou com respeito quando ele repetiu: «A senhora tem que sair». Clarissa encarnou subitamente Joana d'Arc na fogueira. Não se tratava duma fé, nem de ganhar batalhas, nem de defender o rei de França; tratava-se de administrar um direito, e este era, nesse momento, o seu táxi. Recusou-se terminantemente a sair.

Os dois moços estavam alarmados; não sabiam como livrar-se daquela mulher sonsa e perseverante, e, o que era pior, o amigo deles, seu herói manifesto, também não sabia.

- Chame a policia - disse Clarissa. A turba teve um movimento já agressivo, e, de pé, fora do carro, o rapaz ponderou a imprudência da mulher, decidiu-se: «Vamos todos então...» De qualquer modo merecia a veneração do grupo, havia nele, acima do prazer da autoridade, a firmeza dos que preferem a responsabilidade ao prestígio. Mas os seus jovens acólitos estavam vexados. E quando Clarissa declarou que os levaria a casa e pagava a corrida; a humilhação foi insuportável. Saíram, mais adiante, e via-se que o pacto de admiração se quebrara entre eles e o seu capitão. Clarissa teve uma ligeira pena por intervir nesse laço fantástico que é a amizade dos jovens com o seu tutor, o seu exemplo, o seu vingador.

- Não me vai dizer que mora longe só para me castigar- disse. O rapaz, de alterado que estava, deixou-se vencer por aquela ingénua confiança dela.

- Moro um bocado longe. Mas o que é mau é que tenho de ir a casa e voltar para a cidade. A senhora tem de esperar.

- Eu espero. Mas veja lá se faz tudo isso só para me castigar...

Ele riu-se. Mas uma parte da intenção maldosa e da velhacaria tinha-se evaporado, e ele não sentiu mais satisfação em causar-lhe prejuízo. Até, no meio da sua contrariedade e indignação, uma paz, entre a melancolia e a surpresa, apoderou-se dele. O trânsito era, àquela hora, turbulento e difícil; havia largas demoras, a cidade palpitava, desordenada, como se estivesse a ser evacuada, com os seus trastes, as suas mercadorias, a sua gente angustiada e incapaz de se orientar. Mas ali, no carro onde entrava o ar ardente, com cheiro de pó e óleo queimado, havia uma estranha paz. Até o motorista, fleumático ou não de todo indiferente nessa história que lhe parecia irreal e um pouco ameaçadora, deixou o modo crispado e, como de costume, amaldiçoou a profissão e os seus azares. Não o ouviam. Clarissa percebeu que, no meio da guerra desenvolvida, algo como uma flor sombria desabrochava. Um analfabeto em coisas mudas e precavidas diria que se tratava de amor. Qual amor, numa tarde barulhenta, clara, com mil personagens frente aos semáforos, como fileiras de romanos na praia de Óstia à espera do embarque para Sagunto! Era algo mais distinto e lúcido, um sentimento de que a vil condição da época fora vencida, que não eram mais pessoas de discurso e método, burocratas do orgulho, da ordem, do conflito quotidiano, ele e ela. Chagaram à morada, e o jovem Bonaparte, troncudo, de olhos frágeis, desceu. «Talvez não volte» - pensou Clarissa; e via-se que o motorista era céptico. O bairro, lúgubre na sua dinâmica, arruado, quase novo. Havia um silêncio pusilânime, ocioso; possivelmente tratava-se dum dormitório periférico, não estava ninguém em casa. E quanta solidão mesquinha nessa ambição cumprida da casa-garagem-varanda! Quanta monotonia sem cálculo, apenas isenta de sordidez e, por isso, mais vulgar! Clarissa viu o rapaz que vinha apressado, e tremeu um pouco por ter desafiado e quase corrompido a honestidade dele. Era melhor que não voltasse, que se não repetisse o encontro, a viagem, o pequeno desastre do capricho e da honra. Mas ele não queria desiludir-se das suas próprias forças, e estava ali, fingindo-se verdadeiro, desgostoso e atento aos recursos para a vencer e, se possível, entender

também. O regresso foi mais demorado ainda; tudo eram obstáculos, peões alvoroçados, cães vagabundos, recadeiras, sinaleiros que pareciam carregados de competência e perjúrio ao mesmo tempo. « Espero que tenha gostado da viagem» - disse ele. Clarissa pensou simplesmente que ele não ia encontrar outro táxi, e isso causou-lhe mal-estar. Porquê essa virtude violenta, o gosto de interessar-se num pequeno abismo? Agora fixara o acontecimento, e tudo ficava irremediável para sempre. Ele saiu e bateu a porta rapidamente. Até ao último minuto talvez duvidasse desse fácil desenlace e teve receio dalgum mesquinho resultado, como ter de pagar, ser denunciado a alguém que lhe pedisse contas. Isso daria lógica à aventura inviolável; uma aventura neutra e perversa como nenhuma outra. Mas nada aconteceu, e Clarissa pediu ao motorista: «Agora leve-me a casa». Ninguém aprendera nada; contudo, a hostilidade cedera, e só ficaram duas pessoas tomadas de estranheza, sucumbidas a uma espécie de prelúdio que ia arrastar-se; às vezes, tudo voltava à mente, o coração partilhava desse estado de assombro e risco, e diziam: «Tive que fazer isso...» Porquê, se não era interessante, não era louvável, não era sequer justo'? Provavelmente ele perdera os amigos, a dignidade, a certeza de ser um homem que resolvia as coisas; e Clarissa enganara-se, porque não importa lutar por um direito quando ele é uma esmola feita à vaidade. Assim mesmo, vestida como para fazer canoagem no Sena, ela parecia disposta a voltar à cidade e a recomeçar tudo. O malentendido, até ao infinito. Mas eram horas de jantar, e o cão de guarda fungava e ladrava esperando que ela abrisse o portão. Não o quis desiludir, e entrou.
(in Jornal de Letras n.º 26, de 16 de Fevereiro de 1982)

1 comentário:

Elena Antonio disse...

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