20 de abril de 2005

A Cidade e as Serras

Peguemos no livro!

As primeiras páginas, repletas de adjectivos em dose dupla, como já é hábito em Eça, Zé Fernandes (o narrador/ personagem) apresenta-nos três Jacintos: Jacinto- avô, “gordíssimo e riquíssimo”, que, sem qualquer fundamento ideológico, desenvolve tal fanatismo pela causa miguelista, que tem que largar o país e partir para França, onde sempre viveu e onde morreu de indigestão de uma lampreia de escabeche; Jacinto-pai, “esguio e lívido”, que não viveu, passou pela vida como uma “Sombra”, como era conhecido entre os criados; e finalmente o Jacinto- neto, tido desde o berço como um afortunado, graças à herança genética do avô ou à boa -sorte das mezinhas da avó. A sua boa saúde de criança é resumida na frase “Não teve sarampo e não teve lombrigas.” E quanto à sua inteligência : “As Letras, a Tabuada e o Latim entraram por ele tão facilmente, como o sol por uma vidraça.”
Além de saudável e inteligente, o Jacinto era rico e tinha amigos. O Jacinto tinha tudo para ser feliz. Mas o que é ser feliz? Jacinto tinha concebido a ideia de que o homem só pode ser “superiormente feliz” se for “superiormente civilizado”, o que o arredava definitivamente da possibilidade de viver noutro sítio que não fosse Paris, o centro da civilização. E, enquanto pode, apetrecha a sua vida de civilização: o 202, o seu palácio nos Campos Elíseos, tem tudo o que se pode ter no final do século dezanove: máquina de escrever, máquina de calcular, telefone, fonógrafo, telégrafo, numeradores de páginas, coladores de estampilhas, águas quentes e frias, elevadores para a comida, penas eléctricas, etc. Até um elevador para pessoas, equipado com sofá e biblioteca, para uma viagem de sete segundos...
Depois de ter tudo e de tudo conseguir, Jacinto começa a padecer duma terrível enfermidade, o Tédio, que o abala tão tremendamente, que até o bigode murcha “caído, em fios pensativos”. E sofre muito, o Princípe da Grã-Ventura. Sofre de fartura, um sofrimento doloroso que o afunda num desespero imenso. O seu amigo Zé Fernandes e o fiel criado Grilo assistem, impotentes, ao desmoronar de uma felicidade, construída racionalmente sobre uma teoria, a da civilização.
Quando tudo parece perdido, quando parece não ter fim tão grande padecimento, Jacinto vê-se a braços com um problema legal, que o obriga a viajar até Portugal. Só há uma solução: encaixotar a civilização, transportá-la e aguentar mais este revés da vida.
E é neste revés que Jacinto vai reencontrar-se. É do lado de lá da civilização, é experimentando a absoluta ausência das marcas da dita civilização que Jacinto começa a encontrar-se: primeiro, na capacidade de deslumbrar os sentidos, nas paisagens, nos paladares, depois na satisfação da sua generosidade, cumprindo um sentido de justiça, o seu, o que lhe valia a fama de D. Sebastião, para alguns, e “Pai do Pobres”, para outros. E, por fim, na realização da felicidade pessoal, aquela que vai contrariar o seu pessimismo ao considerar-se o último Jacinto, “Jacinto ponto final”.
O meu avô fez deste livro, com toda a razão, o livro da sua vida!

1 comentário:

Mitsou disse...

Há coisas incríveis! Hoje resolvi vir visitar-te neste teu cantinho (como Mitsou, blogger oblige, ehehehe) e deparo com esta preciosidade por ti resgatada! Sou grande apreciadora do Eça e também considero este um dos livros da minha vida. Obrigada pela releitura que me ofereceste. Um beijinho muito grande, Madalena