15 de abril de 2005

A Diva da Agulha e do Dedal


Imagem daqui.

Beatrizinha ou Menina Beatriz. É assim que Jorge Amado se refere à nossa diva do cinema a preto e branco, no prefácio do livro de Beatriz Costa, “Sem Papas na Língua”. Este foi o primeiro livro de uma série de seis que viria a publicar, um dos quais baptizou com o quase despudor que, na época, a qualquer outro cairia mal: “Nos Cornos da Vida”.
Mas Beatriz Costa era assim! Viveu assim, desassombrada, tanto que quase roçava o atrevimento, sem nunca deixar quebrar o respeito que a menina da franja, depois senhora da franja, impunha naturalmente.
Todos temos na lembrança essa menina da franja, uma madeixa curta e direita de cabelo negro, um corte de cabelo também curto, liso e direito, o quase-avesso das “sex simbol” de então. O rosto todo rasgado num sorriso, que podia transformar-se em riso em qualquer instante. Uma figurinha frágil, pouco mais de um metro e meio de altura, cuja arte de representar causaria vertigens a muita gente da época e de agora.
A menina atrevida já nasceu atrevida certamente, pois como ela própria diz, até o Inverno se recolheu nesse dia que, de acordo com o calendário, devia ser de Inverno. "Não sei se o Dezembro de 1907 corria invernoso e frio ou se a Primavera se antecipou, desejoso de florir o meu nascimento…"
Foi no Conselho de Mafra, no dia 14 do tal mês de Dezembro que, no Casal do Barreiro, ousadamente, o dia imitou a primavera, para receber Beatriz da Conceição. As referências fazem presumir uma família humilde e alguma agitação da vida de Beatriz, que se mudou aos quatro anos para Lisboa, acompanhando a mãe que viria a trabalhar em casa do pintor José Malhoa.
Nesses tempos as mulheres não iam à escola e Beatriz só aprendeu a ler aos treze anos, já depois de ter sido aprovada noutras provas da vida, como o segundo casamento da mãe, uma passagem por Tomar e outra vez Lisboa. Beatriz opta então pela profissão de bordadeira. Portanto, a tal agulha e o tal dedal não são fantasia. Existiram na tela e na vida.
Pulsavam-lhe no corpo e no jeito outros talentos, outros bordados e, fascinada pelo teatro de revista, consegue um dia uma carta de recomendação dirigida a um empresário do espectáculo.
Aos quinze anos, pisa pela primeira vez o palco do Éden, na revista “Chá e Torradas”, no papel de corista. As coristas, como o nome indica, pertenciam a um grupo, um coro, e este papel era então uma espécie de exame de entrada no teatro.
Só em 1925, no Trindade, em “Ditosa Pátria”, é que o seu nome viria a figurar no cartaz de promoção do espectáculo, já então com o nome artístico, Beatriz Costa.
Do teatro ao cinema, então ainda mudo, do cinema mudo (onde estreou a figurinha da menina da franja) ao cinema sonoro, de simples corista a nome de relevo de primeira figura, tudo foi acontecendo à velocidade do talento. Com Vasco Santana protagonizou o par romântico do primeiro filme sonoro feito em Portugal, com responsabilidade absoluta dos técnicos portugueses.
Ela é Alice, a namorada do Vasquinho da Anatomia, conhecido assim pelos sucessivos insucessos nos exames da dita Anatomia. Em vez de estudar Medicina, o Vasquinho representa o estudante estróina e boémio, noivo leviano. Ganha juízo nos estudos e no amor, terminando o filme com a cena feliz da boda, com o fado da alegroterapia. Alice, Beatriz Costa, Miss Castelinhos, a noiva. Sempre a mesma arte de representar, com a naturalidade que anos mais tarde viria a ser apanágio dos grandes.
A sua última participação no cinema é a inesquecível Gracinda, lavadeira de Caneças, no filme “Aldeia da Roupa Branca”, que estreou no Tivoli a 2 de Janeiro de 1939. É quase um Romeu e Julieta da zona saloia. Como diz a cantiga, “a noiva é de Caneças e o noivo é da Malveira.”.
Partiu então para o Brasil, onde permaneceu dez anos, segundo ela o período mais feliz da sua vida. Foi no Brasil que Beatriz casou com Edmundo Gregorian, homem das artes plásticas e das letras, em 1947, “o homem mais educado, mais inteligente e mais compreensivo deste mundo", tendo-se divorciado dois anos depois, altura em que regressou a Portugal.
No início dos anos sessenta despedia-se do teatro, com a peça “Está bonita a brincadeira”. As aventuras literárias vieram depois de ter abandonado o palco e o cinema. Em 75 publicou “Sem papas na Língua”, tendo atribuído o sucesso à sua verdade e a algum picante, que não era surpresa para ninguém. A sua amizade e dedicação a Vasco Santana viriam a dar origem a um livro que é uma verdadeira homenagem ao actor, com quem trabalhou e ao lado de quem tanto êxito conheceu: “Quando os Vascos eram Santanas”.
Há de facto qualquer coisa de importante nessas obras, conjuntos de pequenas crónicas feitas de histórias e de memórias, à mistura com considerações muito suas sobre a vida, o mundo e a política. Nesse volume, dedicado aos vascos de outras eras, há um texto lindo em que ela fala do pai e das afinidades imensas, que geravam cumplicidades inesquecíveis. Conta que veio do Brasil, para lhe restituir a alegria que o médico lhe tinha retirado com um sem número de proibições. Determinada, cortou tudo ao meio, porque o preferia vivo e feliz durante cinco anos do que triste e apagado durante quinze.
As últimas aparições públicas de Beatriz Costa na televisão caracterizaram-se pela alegria e irreverência, nas intervenções como júri de um concurso, “A Prata da Casa”, sempre protegida pelo respeito da eterna franja.
Nasceu numa primavera a fingir e morreu numa primavera de verdade. Tinha 88 anos. 1996, dia 15 de Abril, Lisboa.
(Publicado pela Ela Por Ela, em Novembro de 2003 - Divas do Cinema, Madalena Santos)

1 comentário:

Dinamene disse...

Belo post. Deu gosto ler e lembrar que as «estrelas» de agora são (de)cadentes ou, por vezes, nem isso. E de irreverência, da boa irreverência, isso nem se fala. Cromos em capas de supermercado!