O cinema e a vida
Posso dizer que fui salvo – se é que alguém é salvo – pela ficção. Foram os autores – os escritores e, sobretudo, os cineastas – quem me moldou o carácter. Não foram os meus pais – cuja memória eu venero – nem os professores, quem me ensinou a viver. Foi Stendhal e Preminger, Montaigne e Howard Hawks.
Adolescente, interroguei-me sobre a existência de um Deus transcendente, a quem devíamos dar contas e que se encarregava de nos salvar ou condenar; um olho supremo que vigiava os nossos actos e nos ditava os códigos da moralidade. Foi o Marquês de Sade, o divino Marquês, quem me libertou dos preconceitos da fé, foi Sartre quem me ensinou a ser livre, Montaigne quem me ensinou a viver sem garantias.
Aos vinte e poucos anos, em Paris, durante as noites intermináveis em que fui veilleur de nuit num Hotel da Rîve Droite, ao pé da sede do Partido Comunista, devorei todos os livros do mundo, substituí a monotonia das noites tristes dum hotel de duas estrelas pela «ilusion lyrique» dos personagens de Malraux; e, em Julien Sorel, encontrei uma alma gémea com quem partilhei as angústias da solidão e do orgulho: identifiquei-me com aquele jovem ambicioso que esbarrava contra as injustiças do mundo, os paraísos interditos e o preconceito dos poderosos.
Na pele de Robert Jordan, conheci o amor, simples, caloroso e doce, enfiado num saco de couchage, com Maria; e, enquanto os sinos dobram, partilhei com os companheiros de combate a defesa da República, numa Espanha demasiado habituada aos desastres da guerra. Mas «terna é a noite», segredava-me Fitzgerald que logo me devolveu a melancolia e a consciência da morte, esse verme maligno instalado no coração da juventude.
Palmilhei com Rimbaud os caminhos poeirentos de Charleroi a Paris, embarquei com ele no Bateau Ivre e percebi que «je est un autre» e que «la vrai vie est aileurs». Mas o poeta, que se reconciliou com a Beleza, depois de a ter sentado nos joelhos e a ter insultado, abandonou-me no Harrar, depois de ter lançado um grito desdenhoso aos burgueses que o viram morrer com uma gangrena na perna, como um castigo infligido aos que ousam desafiar os deuses e a fortuna: «Qu’est mon néant auprès de la stupeur qui vous attend?»
Ainda guardo alguns livros desses tempos, livres de poche, amarelecidos pelo tempo e roídos pelas traças, a maior parte roubados nas livrarias, alguns sem capa, lidos nos cafés e no metro, onde sublinhei com ênfase juvenil as frases que me guiaram na vida como um vade mecum de algibeira. Abro ao acaso: ouço o velho Ferral da Condição Humana, explicando a Gisors: «Um deus pode possuir, mas não pode conquistar. O ideal de um deus é de se tornar homem, sabendo que não perderá o seu poder; e o sonho de um homem, de se tornar deus sem perder a sua personalidade». E ouço Hemingway comentar o desespero de Thomas Hudson, o seu alter ego nas Ilhas na Corrente, pela perda dos filhos: Ele «esperava poder entender-se a sós com a sua dor, não sabendo, porém, que com a dor ninguém se entende. Cura-a a morte, adormentam-na ou anestesiam-na várias coisas. Supõe-se também que o tempo a cura. Mas se a cura não está só na morte, o mais provável é que não se trate de uma dor verdadeira».
Os livros ensinaram-me a viver comigo, explicaram-me que vivemos livres e morremos sozinhos, e, sobretudo, fizeram-me compreender que eu nunca poderia pensar como um burguês; mas foram os filmes que me libertaram desse solilóquio, dessa solidão que eu partilhava com os meus autores de cabeceira, com quem adormeci, durante anos, e que me deram a consciência de que «o homem é uma paixão inútil» (Sartre) sem outra redenção que o orgulho de o saber.
Foi o cinema que me devolveu a confiança na justiça e no heroísmo e deu um sentido a palavras tão simples como a coragem e a abnegação. James Stewart, o sublime James Stewart, na pele de Mr. Smith, esgotado de fadiga, com a voz embargada pelo esforço, batendo-se pela verdade contra os fariseus do Senado, no filme de Capra; James Dean, sacudindo as golas do casaco de um pai intolerante e maniqueu, como se o quisesse matar ou abraçar; John Wayne, descobrindo a compaixão, como Saúl de Tasso, fulminado por um raio na estrada de Damasco, ao levantar nos braços Nathalie Wood, num plano que Godard disse que era roubado às páginas de Homero; Bogart obrigando a Bergman a entrar no avião - porque há momentos em que há coisas mais importantes do que a nossa mesquinha felicidade -, a mesma Bergman que, anos depois, iria descobrir os outros num vulcão em Stromboli, nos bairros degradados em Europa 51, nos corpos dos amantes calcinados pelas chamas do Vesúvio, milhares de anos antes de Cristo, durante uma Viagem a Itália.
O cinema fez-me conhecer Gene Kelly, dançando e cantando à chuva, imagem da felicidade pura, espontânea, inviolável, como só o cinema sabe dar; e Fred Astaire, em Bandwagon, dançando no parque com Cyd Charisse, harmoniosos e mudos, silenciosos e perfeitos; como me fez conhecer Geoff Carter (Gary Grant) fechando a porta do quarto onde o amigo vai morrer, em Only angels have wings, num gesto viril de pudor, amizade e respeito.
Os filmes não me ensinaram a fazer cinema; ensinaram-me a viver. Foi a vida que me ensinou a fazer filmes.
Um dia li, num diário de Stendhal, uma frase que me ilustra: «Deseja tudo, espera pouco, não peças nada». Sou eu, sem tirar nem pôr.
Não fiz os filmes que queria porque escolhi um médium universal para me exprimir, e porque nasci – e escolhi viver – num país periférico, perdido no mapa da grande cultura popular que é o cinema, onde os filmes nem sequer falam aos seus contemporâneos. Mas tenho vivido como aprendi nos livros que li e nos filmes que amei. Isso me basta. Não tenho outra biografia nem terei outro epitáfio.
Foi a ficção que me ensinou a procurar viver com coragem e justiça, paixão e compaixão; e a aceitar, sem resignação nem azedume, conviver com a imperfeição do mundo e a duplicidade dos homens.
1 comentário:
o texto é maravilhoso,e parabéns pela iniciativa de reunir os textos.ainda não conhecia este baú:)bj da sobrinha
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